“As coisas que nos assustam são em maior número do que as que efetivamente fazem mal, e afligimo-nos mais pelas aparências do que pelos fatos reais.” A sabedoria de Sêneca, na citada frase, poderia ser uma bela sinopse do que Franz Kafka apresenta na obra “A Metamorfose”, uma vez que o real parece não fazer sentido ante as aparências.
“Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto.”
A novela do escritor tcheco inicia-se de forma incisiva, em que o protagonista da história, Gregor Samsa, encontra-se metamorfoseado num inseto gigante. Dessa forma, o início da novela já é o clímax, o que faz da obra extremamente profunda nas suas poucas páginas. Talvez, não haveria como ser diferente, pois o que se pretende mostrar é a verdadeira face humana e esta parece demonstrar-se somente nos momentos de conflito.
Ao estar metamorfoseado em inseto, Gregor Samsa não é visto como de fato é, mas sim por aquilo que aparenta ser, isto é, um monstro, o qual todos tinham de suportar. Embora, continuasse sendo o mesmo Gregor perante os outros, isso não importava, pois o que enxergavam era um inseto gigante. O próprio protagonista chega, logo no início a questionar-se sobre a sua essência:
“Estarei agora menos sensível?”
Gregor Samsa, assim, era visto como um peso para a família, a qual deveria suportar. Kafka, aqui nos mostra a realidade da sociedade, sobretudo, capitalista que restringe o valor do ser humano ao que produz e às aparências, uma vez que, quando “normal”, era Gregor o responsável pelo provimento da família. Contudo, ao “metamorfosea-se” em inseto, tornou-se impossibilitado de prover a sua família, de modo que, na medida em que Gregor não pôde os prover, perdeu o seu valor.
A metamorfose de Gregor evidencia que as relações sociais são pautadas pelos interesses, pois, embora o protagonista seja uma pessoa altruísta, preocupada com o bem estar da família, ele passa a ser excluído pela mesma, dado que o que os interessava em Gregor não é possível naquela situação. Essa exclusão gera um sentimento de solidão em Gregor, que alimenta o seu sentimento de impotência e tristeza e, por conseguinte, diversos problemas psicológicos (típicos do homem contemporâneo).
Assim sendo, o que importa são os resultados, ou seja, somente relações que possam trazer benefícios são necessárias, de tal maneira que uma relação que traga apenas custo é vista como um peso que deve ser jogado fora na primeira oportunidade. Aquele inseto gigantesco, o qual Gregor acreditava que ainda fosse ele, para a família não passava de um peso que tinha que suportar:
“Não que eles desejassem que ele morresse de fome, claro está, mas talvez porque não pudessem suportar saber mais sobre as suas refeições do que aquilo que sabiam pela boca da irmã, e talvez ainda porque a irmã os quisesse poupar a todas as preocupações, por mais pequenas que fossem, visto o que eles tinham de suportar ser mais do que suficiente.”
Como dito, o próprio Gregor se vê como um peso e senti-se na obrigação de poupar os outros daquela visão asquerosa que possuía, como se os sentimentos que o constitui não estivessem no mesmo lugar. Embora, fosse ele que estivesse naquela situação e, portanto, devesse receber ajuda para atravessar o infortúnio, em verdade, acontecia o contrário, em que ele deveria esconder-se para não assustar a sua família.
“Este acontecimento revelou a Gregor a repulsa que o seu aspecto provocava ainda à irmã e o esforço que devia custar-lhe não desatar a correr mal via a pequena porção do seu corpo que aparecia sob o sofá. Nestas condições, decidiu um dia poupá-la a tal visão e, à custa de quatro horas de trabalho, pôs um lençol pelas costas e dirigiu-se para o sofá, dispondo-o de modo a ocultar-lhe totalmente o corpo, mesmo que a irmã se baixasse para espreitar.”
Essa repulsa que a família tinha ao seu aspecto representava a repulsa àquela condição que nada poderia oferecer além de trabalho. O medo já começara a transforma-se em ódio, já que, à proporção que o tempo passava, a família entendia que, naquele estado, Gregor era um peso desnecessário.
Aliás, aquilo não era Gregor, não possuía sentimentos, causava pânico e colocava em choque a tranquilidade da família. Assim, aquela criatura asquerosa só poderia ser tratada da mesma forma que se aparentava. Eram necessárias medidas violentas para provocar o entendimento de Gregor.
“Mas Gregor não podia arriscar-se a enfrentá-lo, pois desde o primeiro dia da sua nova vida se tinha apercebido de que o pai considerava que só se podia lidar com ele adotando as mais violentas medidas.”
Esse ódio que a família passa a nutrir por Gregor é simbolicamente condensado na maçã que o pai o atirara. O inseto monstruoso merecia aquele ódio, pois para a família, naquele estado, Gregor era desprovido de virtudes. Gregor acreditava ser sua a obrigação de cuidar da família – e a família agia como se fosse – de tal maneira que a única virtude que ele possuía era garantir os proventos e, assim, quando metamorfoseado Gregor perde a sua única virtude, sendo merecedor do ódio da família. Afinal, o que restara?
Para a família, apenas trabalho, uma vez que agora (sem Gregor) deveriam cuidar dos seus próprios proventos, fato o qual lhes custavam enorme energia. Ademais, tinha o “pesado” inseto gigantesco, o qual lhes consumia a energia que restava. Portanto, seria uma injustiça por parte de Gregor exigir mais do que faziam. Ora, ele mesmo deixou-os naquela situação de exaustão. Curioso é que Gregor sozinho conseguia prover tudo que a família precisava, tendo que aguentar um trabalho que não suportava, ainda que em momento algum reclamasse disso para a família. Gregor, contudo, deveria receber de bom grado tudo sua família fazia por ele.
“Naquela família assoberbada de trabalho e exausta, havia lá alguém que tivesse tempo para se preocupar com Gregor mais do que o estritamente necessário!”
O tratamento que recebia, bem como o isolamento, fazia Gregor entristecer e perder potência, pois já não era fácil estar naquela situação e ainda ser tratado da forma como aparentava não fazia sentido para ele, já que continuava o mesmo Gregor Samsa por dentro. Ou seja, como poderia ser tratado como um monstro se ainda sentia as mesmas coisas?
“Poderia ser realmente um animal, quando a música tinha sobre si tal efeito?”
É evidente que Gregor em nenhum momento foi visto como um ser com sentimentos e que precisava de ajuda, todos ao seu redor só conseguiam enxergar o superficial, o raso. Por medo? Talvez, sabemos que é preciso coragem para ter uma relação verdadeira e profunda. Mas, acima de tudo, Gregor Samsa perdera o seu valor. Não o valor que faz dele quem é, mas o valor simbólico que a sua família o atribuía e que se restringia a provê-los.
Desse modo, a sua família é incapaz de colocar-se em seu lugar, logo ele, que até ali carregava o peso da família sozinho, era visto com um fardo insuportável.
“Não pronunciarei o nome do meu irmão na presença desta criatura e, portanto, só digo isto: temos que ver-nos livres dela. Tentávamos cuidar desse bicho e suportá-lo até onde era humanamente possível, e acho que ninguém tem seja o que for a censurar-nos.”
Esse traço, hoje, parece ser ainda mais claro e nisso reside a genialidade de Kafka. As relações são líquidas e pautadas em resultados, esforçar-se por alguém está fora de questão, como também, tentar compreender e ajudar alguém que está sofrendo.
Evidentemente, há de se reconhecer que ter alguém naquela situação era difícil, contudo, os relacionamentos trazem peso, esforço e o que nos permite carregá-los é o amor, e este não existia em relação a Gregor. Além disso, a exclusão e a culpa que impunham a Gregor foram pouco a pouco tornando-o mais impotente, triste e sentido-se o monstro que todos achavam.
Diante disso, só restara um fim, a morte, que representou uma libertação para sua família. A causa da morte? Uma maçã podre que carregara no seu dorso, que o fazia pesado, embora estivesse vazio; uma maçã que representava o ódio que sua família o nutria; uma maçã que o levava ao chão, como um inseto. E assim: “a cabeça pendeu-lhe inevitavelmente para o chão e soltou-se-lhe pelas narinas um último e débil suspiro”.