O que somos? Somos seres racionais ou passionais? Bons na essência como acreditava Rousseau ou maus como defendia Hobbes? A história mostra que a essência da natureza humana, do ser, sempre fez parte da discussão intelectual. Clarice Lispector com o seu pensamento único, sempre atentou-se para esse tema, e no seu livro “A paixão segundo G.H.”, considerado por muitos, a sua obra prima, fica claro como a busca permanente pela essência do ser nos aflige.
O livro trabalha uma temática muito forte a partir de uma situação banal, o que demonstra ainda mais a genialidade da autora, pois a banalidade acaba por ser um aspecto muito forte da vida humana, afinal quantas coisas nos acontecem de forma banal? A partir desse fato banal – que é arrumar o quarto da antiga empregada (Janair) que acabara de se demitir – acontece um encontro que promove o insight da G.H., qual seja, o encontro com uma barata, a qual será responsável pela libertação da personagem.
A busca pela essência do ser representa em nós a vontade que possuímos de buscar o real, o verdadeiro, já que em grande medida o real é um jogo simbólico que representa a realidade que queremos acreditar. Há, assim, uma diferença entre as coisas como de fato são e como elas aparentam ser. Por isso, a essência do ser é um mistério e como qualquer mistério é fruto de enorme atração.
Nietzsche já falava que mais importante do que a verdade, é o questionamento sobre o motivo pelo qual existe no homem aquele impulso à verdade. A verdade, para ele, é apenas uma ilusão que se produz por meio do uso da linguagem e do esquecimento, ela é um produto da capacidade de dissimulação do intelecto. Essa dissimulação ocorre, pois a linguagem não casa com o real, isto é, ela sempre extrapola os limites da própria coisa. Seja sobrando ou faltando, não existe na linguagem uma representação da realidade. Em outras palavras, o valor das coisas é construído a partir do valor que as atribuímos ou das máscaras que usamos.
G.H. estava mergulhada nessa fantasia, vivendo como se fosse uma espécie de caricatura de si mesma. É por meio do contato com aquele quarto e, sobretudo a barata, que acontece a libertação daquela caricatura. A barata, portanto, simboliza a busca pelo sentido da vida, pela essência do ser.
Mas, por que um ser tão repugnante quanto uma barata? Porque quando nos examinamos percebemos o quão repugnantes somos. Embora, prefiramos criar uma representação que nos esconda essa repugnância. Para Nietzsche, essa é, inclusive, a função limitada que a razão possui: criar uma representação do mundo.
Aquela barata significava a negação que a personagem fazia do mundo e, por conseguinte, de si mesma, uma vez que a sua negação à vida era justificada pelo seu medo de não se confrontar com a realidade. Medo de olhar-se no espelho sem a máscara ou qualquer muleta que diminua o desconforto de existir. Mas, ao entrar naquele quarto, ao deparar-se com a barata, não havia como voltar e fingir que tudo não passara de um sonho.
Ela passou a enxergar a realidade sem as representações que criara, sem as máscaras, sem as muletas. Percebeu que as muletas servem para camuflar a humanidade do homem, a sua mesquinharia, precariedade, ódios. Percebeu que estava longe da divindade, que era só humana, que o que escondia atrás de máscaras era o humano em sua totalidade; era humano, demasiado humano.
“Não estou à altura de ficar no paraíso, porque o paraíso não tem gosto humano!”
O encontro com a barata a mostra que entre o humano e o divino existe uma ponte inalcançável, ponte esta que o homem através da sua racionalidade procura alcançar, como se o humano fosse negar em si mesmo a sua animalidade, esperando ser mais do que seja capaz e, assim, sente-se muito exigido em relação à vida, assim como cobra desta uma satisfação maior do que ela pode dar.
Para Nietzsche, essa cosmovisão dos homens racionais gera ressentidos, pois estes precisam de uma tábua de segurança, uma verdade para se agarrar, uma vez que não sabem que estão lidando com disfarces e máscaras, enquanto os homens intuitivos, como obra prima do disfarce, seguem pela vida sem querer que ela lhes ofereça mais do que é própria a ela.
“Tão secreta é a verdadeira vida que nem a mim, que morro dela, me pode ser confiada a senha, morro sem saber de quê.”
É preciso aceitar a nossa condição como a única possível, pois por mais que busquemos a essência do ser, estamos submetidos ao disfarce, ao teatro que nos cerca e, assim, nunca conseguiremos apenas com o nosso olhar identificar a essência dos seres. Dessa forma, o indivíduo não deve exigir de si e da vida mais do que ela é, embora deva procurar transformá-la em algo melhor.
Há de se considerar a dificuldade em encarar-se como o humano proposto por Clarice e Nietzsche, já que quando tentamos buscar a nossa essência acreditamos na bondade que representa o ser humano. Contudo, esquecemo-nos que há atrocidades que somente o homem comete e, assim, essa bondade junta-se à maldade que tentamos esconder. Esconder com máscaras, disfarces, muletas ou como diz Clarice uma terceira perna.
“Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então não me impossibilitava de andar, mas que fazia de mim um tripé estável. Essa terceira perna eu perdi. E voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca tive: duas pernas. Sei que somente com as duas pernas é que posso caminhar. Mas a ausência inútil da terceira me faz falta e me assusta, era ela que fazia de mim uma coisa encontrável em mim mesma, e sem sequer precisar me procurar.”
Para G.H., já não existia a terceira perna e o confronto com a realidade era inevitável. O desassossego gerado pela ausência da terceira perna fazia com que ela precisasse procurar a sua essência, superando o seu medo. Medo este, que é de todos. Medo de ver aquilo que não se quer, dado que muito embora tenhamos o impulso à verdade, a realidade é áspera demais para não causar rupturas em que a observa.
G.H. necessitava desse encontro e só enxergava um caminho: a barata. Não somente observá-la, mas sentir o que a formava, pois, desse modo, conseguiria mergulhar em si mesma e encontrar-se.
“Eu que pensara que a maior prova de transmutação de mim em mim mesma seria botar na boca a massa branca da barata. E que assim me aproximaria do… divino? do que é real? O divino para mim é o real.”
Ao sentir a barata, a personagem depara-se com a perda, embora esperasse se encontrar. Mas, essa perda mostrou-se muito mais reveladora que o encontro, pois a perda representava o real, a sua essência. Não uma essência que descreve o que é o ser humano, pois como já foi dito, este é incompreensível; mas o que é a própria essência da vida, a saber: perder-se. Pois, ao homem, o mundo será sempre um estranho, em si mesmo há tantos mundos, de maneira que em nós as perguntas são criadas sem que sejamos capazes de entender as respostas.
“Eu tinha a capacidade da pergunta, mas não a de ouvir a resposta.”
Dessa forma, G.H. entende que por mais que busque a verdade, ela nunca saberá de tudo, uma vez que a cada passo que damos desconstruímos uma realidade e construímos outra, e por mais que a barata tenha revelado traços humanos que através de máscaras, disfarces ou pernas queiramos esquecer, sempre haverá uma parte que será inatingível, pois estamos em constante movimento, estamos nos perdendo, nos reconstruindo e essa é a essência que Clarice propõe, posto que:
“A alegria de perder-se é uma alegria de Sabbath.”
Ou seja, embora quisesse encontrar-se, perder-se mostrou-se uma alegria incontida para G.H., pois nós enquanto humanos nunca somos algo, mas sim, estamos sendo algo. Tudo é um começo, uma história contada por diferentes vozes, não há como chegar ao humano em sua totalidade, sabemos que ao longo do caminho vestígios vão sendo deixados, mas ainda assim, não são suficientes para traçarmos um diagnóstico.
Essa perda, talvez, seja mais áspera que o encontro do ser com a sua totalidade, pois é preciso estar pronto para ter da vida aquilo que ela é capaz de dar, para mergulhar no magma do incompreensível e saber dançar das próprias vicissitudes. A vida é uma aprendizagem que não pode ser medida, é um vazio como diz Nietzsche, ou como prefere Clarice:
“A vida, meu amor, é uma grande sedução onde tudo o que existe se seduz. Aquele quarto que estava deserto e por isso primariamente vivo. Eu chegara ao nada, e o nada era vivo e úmido.”