O ethos adquirido por meio da socialização é um tema que me instiga significativamente como sociólogo em formação e cientista politico de origem (ou cientista social de alma e corpo para resumir). E as inquietações relativas a essa problemática não deixam de me atordoar no momento da leitura de mais um livro ou do desfrute de mais um bom e velho longa-metragem. Sabemos, por meio do conhecimento sociológico, que dependendo da família, da classe social, do bairro, dos grupos de pertencimento, do país, do gênero ou mesmo da raça/etnia, nós, indivíduos, formulamos diferentemente nossas preferências nos mais diversos campos e, portanto, constituímos a nossa personalidade de forma plural, além de herdarmos capitais distintos que nos abrem ou fecham portas. Podemos achar que variáveis externas são dados irrelevantes, podemos ser dados á negação de tudo aquilo que nos influencia ou de onde viemos, mas mesmo os mínimos trejeitos de nossos pais ou avós acabam respingando nos nossos movimentos corporais, nas frases feitas repetidas, na escolha de qual música ouvir ou que prato escolher.

Esse imperativo fica mais claro quando observamos o modo como a reprodução social ocorre. Bastando para isso ver como médicos, juízes, diplomatas, intelectuais e outros membros de segmentos supostamente ilustrados da sociedade são, em muitos casos, nada mais do que filhos ou sobrinhos de médicos, juízes, diplomatas, intelectuais e outros membros de segmentos supostamente ilustrados da sociedade. São modos de analisar, estudar e se comportar repassados de geração para geração. A garantia da perpetuação de prestígio, riqueza e status associados a um determinado sobrenome. Aos que estão fora desses círculos concêntricos de privilégios só resta à sobrevivência à margem ou então a adequação a postos e colocações bárbaros que alimentam a máquina do sistema.

Ao assistir ao clássico do cinema alemão “O direito do mais forte é a liberdade” esse processo de reprodução dos insiders e afastamento dos outsiders faz explodir, com todo o brilhantismo do falecido diretor Rainer Werner Fassbinder, o gigantismo que os estilos, gostos e preferências podem tomar em meio à intersubjetividade dos micro espaços. Fassbinder nos mostra como os integrantes das elites se locupletam de tais signos de nobreza e como quem está fora é ridicularizado, caricaturizado, mesmo que tente ingressar aos poucos nos filões da elegância, com rios de dinheiro recentemente ganhos por conta do acaso.

A trama é protagonizada por Franz, interpretado pelo próprio diretor, um sujeito que tira o seu sustento de apresentações artísticas, em um parque de diversões, que são um belo dia interceptadas pela polícia. Com isso e a prisão do seu namorado, que liderava o “mini circo”, Franz resolve se aventurar nos banheiros públicos a procura de programas com homens na inóspita Berlim Ocidental da década de 1970. Faz isso para tentar pagar as dívidas que possui com a irmã, uma prostituta. Em um dos banheiros ele conhece um homossexual da alta sociedade alemã que o ajuda a chegar a tempo na loteria para fazer um jogo que se encerraria no mesmo dia e do qual sai vencedor, adquirindo um prêmio de meio milhão de marcos, a moeda do país na época.

Com esse dinheiro, Franz passa a conhecer outros homens gays ricos e acaba se apaixonando por um deles, Eugen, o jovem herdeiro de uma editora de livros e revistas com a qual o seu pai fez fortuna. Sua família é de “boa estirpe”, daquelas que conversa sobre Bach e Mozart durante o jantar. Franz, no entanto, é permanentemente humilhado pelo próprio companheiro, já que mesmo rico continua com trejeitos de operário; não detém berço ou raízes importantes. Veste-se como o proletário que sempre foi, além de beber como tal e falar como tal.

Além do mais, rejeita os livros ou a ida a ópera ou ao teatro, programas culturais da preferência de Eugen. É alguém que tem as portas do mundo dos ricos aberta para si mas que continua sendo um forasteiro, alguém que está mas não está lá, com dificuldades para internalizar noções básicas de etiqueta e palavras complicadas. Mesmo assim permanece sofrendo como um boneco de ventríloquo nas mãos de Eugen. Sua subalternidade é tamanha que resolve salvar a empresa do sogro da falência e ainda trabalhar como voluntário mexendo com uma máquina de impressão na editora para se ocupar.

Eugen não vê ao seu lado um ser humano em pé de igualdade. Para ele, Franz é alguém que não aparenta opulência, servindo no máximo para lhe fornecer socorro financeiro nas dificuldades familiares, prover o luxo de um apartamento comprado com seu prêmio na loteria e continuar como uma espécie de garoto de programa operário que nunca deixou o seu papel, lhe garantindo serviços sexuais sem nenhum tipo de afetividade. Com todo o seu bom-mocismo, Franz acaba por virar um bobo da corte, enganado e pisado, para o qual o seu companheiro tenta fornecer, a todo custo, um ethos estrangeiro que ele não consegue tomar para si.

Nesse universo de elites, ele é um estranho, onde não adianta apenas a posse de economias significativas se lhe falta uma socialização estamental adequada. Pobre Franz, teria que nascer de novo! Em sua esperteza, Eugen vai lhe desprezando ao longo do relacionamento, ao mesmo tempo em que tira aquilo que lhe resta de dinheiro, o que o faz imergir novamente na pobreza. Uma triste história de engano, sordidez e vilania na qual prevalece mais uma vez o direito dos que sempre foram mais fortes, matando o último sopro de esperança de quem achou um dia estar no topo da escala evolutiva da sociedade capitalista. O protagonista nada mais é do que um símbolo do que está reservado aos cidadãos pela famigerada loteria do nascimento: sempre falta aos miseráveis do mundo como Franz ou “Fox, a cabeça falante” algo do qual eles não podem recuperar.

*O drama de 1975 se encontra disponível nesse link: https://www.youtube.com/watch?v=IGSg6nlfYlU