Foto: Monumento Mínimo, intervenção urbana de Néle Azevedo

 

O ser democrático está em crise. O diálogo foi substituído pela violência, o respeito pela intolerância, a reflexão pelo ódio. É o mundo dos paradoxos, dos avessos, das ironias. Mundo de pessoas muito próximas e ao mesmo tempo distantes, do oceano de informação e naufrágio do conhecimento, das evoluções industriais e involuções dos afetos, de tantas gentes e pouca humanidade. O que está havendo? Onde nos perdemos? Para que serve tanta tecnologia? Quais as soluções do capital?

Enquanto a ciência comemora novas descobertas e o mercado novos recordes de produção, a sociedade parece estar caminhando para uma realidade sombria, saída de algumas das distopias produzidas no século passada. O mundo moderno, regido pelo relógio moral da máquina, parece nunca estar satisfeito. Há sempre algo novo a ser criado e, obviamente, algo velho a ser destruído. Há sempre alguma coisa para se produzir, uma nova engrenagem a ser colocada na linha de montagem, alguma estatística de inutilidade (pessoas) a ser transformada em estatística de consumo.

Entretanto, um mundo de coisas é a mesma coisa que um mundo de pessoas? Como está a nossa condição humana no mundo líquido moderno?

Zygmunt Bauman, ao analisar o mundo contemporâneo, dizia que “A administração da vida parece afastar o homem da reflexão moral”. Ou seja, dada as circunstâncias de uma sociedade que exige cada vez mais de nós, em que tudo que fazemos parece seguir uma obsolescência programada cada vez mais rápida e cruel – ou como melhor preconizou Marx: “Em que tudo o que é sólido se desmancha no ar” – parece haver uma dificuldade para que o homem possa refletir criticamente sobre a realidade em que vive e, assim, tomar atitudes conscientes, agindo de forma individual, mas tendo ciência do coletivo.

Em outras palavras, o que Bauman atesta é a construção de um mundo frágil em suas bases, mas que exige um esforço desumano para que os indivíduos possam se adequar àquilo que se mantém de modo sólido em uma sociedade líquida – o capital e tudo que gira em seu entorno. É nítido que o tempo natural do homem não é o mesmo da máquina, mas isso pouco importa, porque ambos formaram um único amálgama insolúvel, naturalizando algo não-natural pelo aparelho simbólico existente.

Como o lado forçosamente convertido é o do homem, é evidente que ele seja a parte que mais sofra. As consequências da sua conversão em um apêndice das máquinas são perceptíveis desde uma série de problemas típicos da nossa época, como depressão e ansiedade, a outros – que mesmo não sendo exclusivos dos nossos tempos, como a intolerância e o ódio – assustam por existirem em um mundo teoricamente democrático.

Nesse sentido, é preciso considerar como a própria maneira como a organização social tem levado a instauração e reprodução desses problemas, isto é, a como o próprio modus operandi da sociedade contemporânea afeta a condição humana. Hannah Arendt percebeu essa relação de modo muito preciso. Segundo ela, a forma como a sociedade moderna está organizada dificulta a reflexão e, consequentemente, o pensar político (coletivo) sobre as coisas.

Há de se considerar, dessa forma, as características próprias de um mundo regido pela técnica e que, como assevera Arendt, cria dificuldades para o aprimoramento da condição do homem enquanto um ser social.

De um lado, o mundo moderno, por meio dos seus “avanços” e “progressos”, produz um encantamento muito grande em relação a tudo que é construído, de tal maneira que os indivíduos sentem dificuldade em pensar de forma crítica acerca daquilo que está sendo feito em função do encantamento produzido pela técnica. Por outro, na medida em que todos passam a estar condicionados por uma configuração temporal, em que a velocidade é conditio sine qua non da existência, ou como diz Milan Kundera em “A Lentidão” – “A forma de êxtase que a revolução técnica deu ao homem” –, há também a perda da experiência, isto é, da capacidade de se relacionar com o tempo de modo mais harmônico, possibilitando um enlace entre a memória e a eternidade.

Diante disso, a condição humana passa a estar muito mais mecanizada, desalinhada com a natureza e afastada do diálogo coletivo-social. Ou seja, automatizada e ensimesmada, já que afastado de uma maior reflexão sobre o seu eu individual e coletivo, o homem passa a estar desumanizado, vivendo em uma constituição de mundo individualista, em que a existência se conjuga exclusivamente na primeira pessoa.

Dessa maneira, o espaço da política, da convivência, do diálogo com o outro, deixa de existir; assim como, as experiências construídas e memorizadas entre indivíduos, grupos de indivíduos e até mesmo populações. Em outras palavras, o homem convertido em um autômato egoísta é um “animal” incapaz de viver em sociedade, pois requisitos imprescindíveis para que isso ocorra – como reflexão crítica sobre a realidade e consideração do outro como um ser individual, com o qual é preciso dialogar – deixam de existir.

E, assim, a intolerância, o ódio, o egoísmo, a incapacidade de diálogo e as “cegueiras brancas” constituem um caldo altamente nutritivo, que alimenta ininterruptamente a nossa desumanização, levando-nos a instauração da violência em todos os âmbitos de nossas vidas. Não se trata, entretanto, de criar uma realidade dissociada da técnica, das máquinas, do capital, do progresso; mas antes, de criar um mundo de homens que utilizam as coisas para o crescimento do espírito humano, e não um mundo de coisas que converte os homens em seus escravos.

É preciso urgentemente repensar as bases que devem constituir o nosso mundo, a fim de que o homem possa existir enquanto ser e enquanto gentes, porque está mais do que na hora de entender, como disse Galeano, que precisamos ter a coragem de ficar sós e a valentia de ficar juntos, porque de nada serve um dente fora da boca, nem um dedo fora da mão.