Faço parte de uma geração que ouviu histórias, contadas de bom grado, mas baseadas em fatos irreais. Uma geração que chora e se lamenta porque entendeu que “sonhos” eram para ser música nos ouvidos, e não a expressão mais contundente de lágrimas que descem dos olhos e suor que grassa do rosto. Que entende que a vida tem que ser perfeita, sem desafios, sem sofrimento. E que quando não se realizam suas expectativas compreende que a vida do seu vizinho, que às vezes não se vê, é arco-íris e rosas, que não tem espinhos e que portanto para o outro não há a angústia na “dor de ser aquilo que se é”. É a geração que acumula as frustrações das que vieram antes, daquelas que não puderam imaginar uma vida idílica, que precisou trabalhar para viver, para ter estabilidade, para se firmar na vida e que portanto não teve tempo de elaborar conjecturas. Talvez por ter recebido carga tão pesada nas costas é que a minha geração, a geração dos pós-millenials, esteja tão deprimida, tão ansiosa, tão cansada. O gatilho que acionou esse estado de ânimos aturdidos parece uma grande bobagem se narrada para aqueles que nos trouxeram até aqui, mas para nós pesa muito, ah se pesa… para essa geração digital.

Deixe-me explicar porque eu trago os reclamos da minha geração em primeira pessoa. Ela é feita por todos aqueles que nasceram a partir da segunda metade da década de 1990 até 2010. Ao contrário dos que vieram antes, não conhecemos um mundo não digitalizado, embora possamos ter resquícios na memória de quando telefones celulares não eram tão difundidos ou computadores um item de sobrevivência em casa. Ao contrário das que vieram antes, nos ensinaram que trabalhar é “fazer aquilo que se gosta”. Ideia bonita, parece até natural, mas que nossos pais e avós por exemplo desconheciam na sua juventude. Ao contrário das que vieram antes, não precisamos fazer muito esforço para conseguir algumas coisas que antes eram pouco acessíveis como conhecimento e informação, por exemplo. A depender do caso e da realidade do jovem, há também o fato de que nós vivemos melhor do que nossos antecessores familiares. Enquanto ouvimos dos mais velhos histórias de intenso sofrimento suportado com muita rispidez, nós agora podemos conviver com mais ou menos conforto e mesmo assim passar o dia reclamando da vida. Muitos de nós podemos viver sustentados pelos pais, com nossas necessidades atendidas e ainda assim ter que sobreviver, cada vez mais cedo, a base de tranquilizantes. Achando que nosso mundo cai todo dia, mas ele continua de pé.

Nossa geração tira a própria vida mais do que qualquer outra do passado. Porque não acredita nela, porque a acha tediosa, porque enxerga uma crescente incompatibilidade entre aquilo que se é e aquilo que a sociedade impõe que sejamos. Nos sentimos feridos na nossa individualidade, nos nossos anseios, porque nos achamos muito mais importantes do que de fato nós somos. Compramos, de modo acrítico, a ideia de que as possibilidades são infinitas e que o mundo gira em torno do nosso umbigo. Se queremos algo, não devemos ir atrás, é a Terra que tem que girar em determinada rotação e providenciar o nosso bem-estar. Fomos mimados, mas não só por familiares como também pela propaganda, e qualquer coisinha que fuja do nosso cálculo é razão para irritação ou resmungo. Toda essa narrativa ao contrário de nos tornar mais fortes como esperavam aqueles que nos deram ela de presente, nos tornou mais frágeis pra enfrentar a dura realidade da vida. Se hoje há jovens consumindo livros de autoajuda ou procurando por novas formas de espiritualidade não convencionais, é porque querem respostas para a perturbação que os assola frente as intempéries. Da escola, da universidade, do trabalho, das amizades e dos relacionamentos. Também, e aqui faço minha geração de vítima, somos cobrados mais do que nenhuma outra a comer de forma saudável, ter o corpo bonito, ser feliz como se estivéssemos em uma ditadura da felicidade, atualizar rotineiramente nossos eletrônicos dotados de obsolescência programada, pensar “alto” e não reconhecer as nossas amarguras e rancores na frente dos outros.

Hoje garotos ou garotas brancos e de classe média alta gravam vídeos chorando e se lamentando por conta da carga de estudos do colégio, da escolha para o vestibular, das cobranças por estar sempre na moda. Basta fazer uma pesquisa rápida nas redes sociais para ver quantas e quantos despejam suas alucinações nesses vídeos ou em videogames, nas drogas ou no sexo precoce. Em tese, eram para estar felizes, já que tem tudo o que os seus pais muitas vezes sempre sonharam. Quando se expõem, são vistos como aqueles que se sentem sem norte, mas não tem motivo para isso. Pura frescura… Viram até parte do repertório para risos. A questão é que o problema nem é só deles, dos privilegiados. É de filhos de trabalhadores que hoje tem oportunidades que antes não teriam. Tenho visto que os mauricios e patrícias que gravam vídeos nos seus enormes quartos apenas expressam a condição mais geral de uma geração que achava que aos 25 teria carro, casa própria, um cargo consolidado e estaria viajando pelo mundo. Bastaria ter um curso superior garantido pelo investimento daqueles que o “patrocinam”, alguma experiência e pronto: lá vem o meu emprego dos sonhos, com empregadores correndo atrás de mim e não o contrário. É toda uma filosofia de vida que contradiz a nossa própria condição de vida. Temos uma expectativa de vida maior hoje, cerca de 80 anos em alguns países, o que na prática significa mais tempo para materializar nossos devaneios. Mas achamos que o tempo é nosso inimigo e que chegar aos 30 sem ter realizado aquela viagem a Paris ou Nova York é o atestado do fracasso, imperdoável. Nossa geração é aquela que faz menos amor, porque vive imersa na hipersexualização da pornografia donde deriva que o sexo já não importa tanto. Mas tenho a hipótese de que também isso ocorre porque a minha geração é mais triste, a mais triste de todas. É aquela que vive da imagem e não da substância.

Nossa geração está de braços atados. Nos deram horizontes demais sem lastro na realidade. Nossa geração é a que mais quer, mas também é a que menos pode ter. Em uma época em que se flexibilizam as condições de trabalho, fica mais difícil ainda achar que vamos ter o prometido sucesso dos manuais e da conversa fácil dos coachs: aqueles que dizem que querer é poder e não que querer é o primeiro passo de um túnel muitas vezes sem luz no fim. Nossa sanha se esticou demais, e não foi por nossa culpa. Assim como também não é por nossa culpa que se concentra cada vez mais a riqueza, fazendo com que a ideia daquele ano sabático percorrendo as trilhas da Ásia seja um projeto para meia dúzia de jovens que ficaram alojados no topo da pirâmide – mas que é vendido como o projeto universal. Recebemos uma vida melhor mas talvez nosso destino seja viver pior e agora com o agravante de viver desiludido com as inverdades que nos contaram, mas que eram justificáveis. Com a crueldade de viver sem saber o mínimo, sem ser prático, pois nossa geração quer escalar o topo do Everest sem saber fritar um ovo ou cozinhar um macarrão. Se julga mais inteligente mas é incapaz de ir ao médico sozinha ou resolver problemas burocráticos. Se vê como portadora de verdades que os velhos deveriam ouvir mas nunca trocou uma fiação ou cuidou de um irmão menor, ou seja, nunca teve ainda adolescente alguém sob sua dependência para sobreviver. Idealizamos demais e sentimos de menos. Amargamos demais e damos duro de menos. Necessitamos demais e suprimos de menos. Em suma, muito romance e pouca realidade. A vitória da materialidade sobre a subjetividade implica uma geração em que coisas importam mais que pessoas, mas são as pessoas que fazem eminentemente o mundo o qual nós só queremos conquistar, ainda que desistindo fácil e rápido; mundo esse das minhas mãos que provavelmente não será mais do que um espectro.