A noção de uma “ditadura perfeita” é, para muitos, um conceito difícil de assimilar, especialmente quando pensamos na forma tradicional de regimes autoritários, onde a repressão é exercida por meio de violência física e censura explícita. Contudo, a ditadura contemporânea não segue esse modelo. Na verdade, ela se torna mais insidiosa e eficaz quando o controle é internalizado pela própria população. Neste novo formato, não é o governo que impõe a repressão diretamente, mas sim o próprio cidadão, que se torna cúmplice do sistema por meio da fiscalização e denúncia do outro. Esta dinâmica, alimentada pelas tecnologias modernas, se reflete em um controle mais sutil e menos perceptível, mas igualmente, se não mais, eficaz do que a opressão física.

A comparação com o clássico de George Orwell, 1984, é inevitável. Na obra, o autor descreve uma sociedade onde o “Big Brother”, a figura central do governo totalitário, exerce um controle absoluto sobre seus cidadãos. O controle não se limita a vigilância constante, mas também se estende à manipulação dos pensamentos e comportamentos dos indivíduos. O mais aterrador de 1984 não é apenas o regime de repressão brutal, mas a internalização do poder por parte dos próprios cidadãos. Ao longo da narrativa, os próprios indivíduos se tornam agentes da repressão, vigiando, denunciando e, muitas vezes, se autocensurando. Este é o estágio final de qualquer ditadura: quando a população se torna cúmplice de sua própria subordinação, como uma extensão do poder estatal.

Na sociedade contemporânea, a vigilância do “Big Brother” se tornou uma tarefa compartilhada por todos. As redes sociais, que deveriam ser plataformas de interação e conectividade, se transformaram em espaços onde os cidadãos atuam como juízes e carrascos uns dos outros. A qualquer momento, qualquer pessoa pode ser acusada, criticada ou cancelada publicamente, seja por um erro passado, uma opinião divergente ou simplesmente pela exposição de algo íntimo. Nesse cenário, as tecnologias digitais, como o reconhecimento facial, o monitoramento das transações financeiras e o uso de moedas digitais, como o Drex no Brasil, se tornam ferramentas para manter o controle, sem a necessidade de intervenção física direta. O próprio sistema de pagamentos instantâneos, como o Pix, oferece um nível de vigilância sobre as ações econômicas que é difícil de perceber, mas que está sempre ali, pronto para ser usado para monitorar e regular comportamentos.

A maior arma da ditadura moderna não é a força bruta, mas a psicologia humana. As grandes corporações e o próprio Estado sabem como manipular os medos, as inseguranças e os desejos das pessoas para manter o controle. O sonho de todo oprimido é, muitas vezes, se tornar opressor. Esse ciclo vicioso é uma das ferramentas mais eficazes de controle social. Quando uma população se sente vulnerável, ela busca segurança, mas muitas vezes acaba aceitando um sistema de controle cada vez mais profundo e abrangente. A solução, muitas vezes, vem disfarçada de benefício, como a promessa de segurança, de ordem pública ou de prosperidade econômica. No entanto, por trás dessas promessas, o que se esconde é a manutenção de um regime de controle, onde a liberdade individual é constantemente sacrificada em nome da estabilidade e da ordem.

Além disso, as redes sociais e as tecnologias de vigilância são alimentadas por emoções como ódio, medo e discórdia. O engajamento nas plataformas digitais é maximizado quando os usuários se sentem provocados, injustiçados ou indignados. Esse fenômeno é exacerbado por algoritmos que priorizam conteúdo polarizador e emocionalmente carregado, incentivando disputas e divisões na sociedade. A criação de “inimigos” e “bodes expiatórios” facilita a manipulação, pois a população, imersa no ciclo de ódio e discórdia, acaba se tornando mais suscetível a aceitar o controle imposto. Em um ciclo sem fim, a população se torna cada vez mais ativa na manutenção de sua própria opressão, com os próprios cidadãos se tornando agentes da repressão, como se fossem parte de um exército invisível.

Em um mundo onde o controle social se dilui na própria sociedade, o Estado e as grandes corporações não precisam mais agir abertamente. Eles usam as emoções humanas e as ferramentas digitais para criar um sistema no qual todos estão constantemente vigiando e controlando uns aos outros, ao mesmo tempo em que permanecem distantes da crítica direta. Não há necessidade de um “Big Brother” clássico, pois os cidadãos, movidos por medos e desejos incutidos em suas mentes, fazem esse trabalho de forma voluntária e, muitas vezes, sem perceber.

Portanto, a ditadura moderna não se manifesta apenas na imposição direta de poder, mas também na manipulação dos sentimentos e comportamentos das pessoas, tornando-as cúmplices do sistema que as submete. O uso de tecnologias como as redes sociais, os sistemas de pagamentos digitais e o reconhecimento facial, aliados à psicologia do medo e da divisão, tornam possível uma vigilância e controle muito mais eficazes e abrangentes do que os regimes autoritários tradicionais. A maior ameaça à liberdade não está mais nas forças externas, mas nas próprias escolhas que fazemos como sociedade, muitas vezes sem perceber que estamos reforçando as correntes que nos aprisionam.

O desafio, portanto, é escapar dessa armadilha psicológica e tecnológica, desenvolvendo uma consciência crítica em relação aos sistemas que nos controlam. Só assim será possível romper o ciclo da opressão que, na era digital, se disfarça sob a máscara da segurança, da ordem e da conveniência. O verdadeiro “Big Brother” já não está mais em um governo distante, mas dentro de cada um de nós, alimentado pelas tecnologias que utilizamos e pelas emoções que manipulam nossas ações.