Em uma palestra para a Unidade Cooperativa Unidonto, Leandro Karnal faz uma pertinente reflexão sobre a ofensa e sua relação com o poder que damos aos outros. Confira abaixo a transcrição do trecho.
“A quem pertence a tua paz? De quem é a tua tranquilidade de espírito? É do outro ou é tua? Porque se ela for tua ninguém te tira, mas se for do outro ele a te tira a todo instante. Quem pode me irritar? Quem pode me ofender? Unicamente a quem eu der esse poder. Por isso, a ofensa é um fracasso pessoal”.
“No trânsito eu escuto basicamente duas coisas em São Paulo: referências a uma vida duvidosa moral de minha mãe e dúvidas sobre a minha orientação sexual. Se alguém chama a minha mãe de prostituta (vou usar esta palavra um pouco mais suave, embora não seja a que se use em São Paulo) eu tenho que avaliar: minha mãe era uma prostituta? Tudo o que eu sei indica que não, como seu rosto sério nas fotos, uma aparente falta de felicidade… Eu acho que ela era fiel. Estava sempre com uma cara azeda. E pela renda que ela desenvolveu ao longo da vida creio que não coincida com o ofício de garota de programa. Logo, minha mãe não é uma prostituta. Mas, em uma hipótese B, minha mãe é. Nesse caso, eu tenho que dizer a quem me xinga: ‘Ah! Você conheceu mamãe? Você frequentou nossa casa? Em que época foi? Pois eu me lembro de tanta gente…’ Ou minha mãe era ou não era. Nos dois casos, qual é a ofensa? Se minha mãe não é, logo o acusador está mentindo. Se minha mãe é, logo o acusador está dizendo a verdade, então eu tenho que reclamar de minha mãe e não de outra pessoa.
A outra opção da qual me xingam é de ‘veado.’ Nesse caso, geralmente há duas hipóteses, embora hoje haja mais: sou ou não sou. Se eu for não é um xingamento, pois orientação sexual não o é. Eu posso dizer à pessoa: ‘Ah, sou! Você me conhece? Eu estava olhando a fronha, não lembrei muito do seu rosto.’ Pronto, posso dizer isso. E se não sou, logo isso não me atinge.
Quem pode me ofender? Só um tipo de pessoa: aquela que diz uma coisa com a qual eu concorde.
Em referência aos budistas, eu aprendi ano passado, em Butão, com um monge, uma frase muito boa. Eu fui ao Butão com um grupo de pessoas e o monge disse: ‘A ofensa é uma brasa que você atira na pessoa para queimá-la; a ofensa é um fogo na mão com o qual você quer queimar a pessoa o máximo possível. E talvez você consiga, mas em cem por cento dos casos você queima a sua mão. Você é o primeiro a embarcar na energia da ofensa.’ Então eu tenho que decidir quem pode me ofender. Se alguém passa na rua e grita: ‘Careca!’, o que eu vou dizer? ‘Que bom que você vê! Com tanta gente cega no mundo…’ Alguém me chama de ‘velho’, que é uma questão de comparação. Comparado com quem? Se for com a rainha Elizabeth eu estou deixando as fraldas. Se alguém me chama de qualquer coisa eu tenho que pensar comparativamente.
Quem pode me ofender? Unicamente a quem eu der esse poder. Por isso, a ofensa é um fracasso pessoal”.
Transcrição feita e adaptada pelo Provocações Filosóficas do trecho da palestra de Leandro Karnal – Uma filosofia de Vida? Unidade Cooperativa Unidonto.
Confira na integra:
Leandro Karnal (São Leopoldo, 1º de fevereiro de 1963) é um historiador brasileiro, atualmente professor da UNICAMP na área de História da América. Foi também curador de diversas exposições, como A Escrita da Memória, em São Paulo, tendo colaborado ainda na elaboração curatorial de museus, como o Museu da Língua Portuguesa em São Paulo.
Graduado em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos e doutor pela Universidade de São Paulo, Karnal tem publicações sobre o ensino de História, bem como sobre História da América e História das Religiões.