“Nada do que jamais aconteceu pode ser dado como perdido para a História”, escreveu Walter Benjamin. De fato, a história, como um processo de rupturas e continuísmos, não pode se dar ao “luxo” de descartar experiências e/ou cristalizar fenômenos históricos. Em história, tudo é importante e tudo deve ser observado, visitado, perscrutado e revisitado constantemente. Desde os fatos mais “grandiosos” e que saltam aos olhos, até aqueles ciscos, pouco visíveis, que se “escondem” no chão da história.

Isso implica pensar a história como a ciência da transitoriedade, que de acordo com as intempéries do momento, vai ganhando novas formas, contornos e atingindo lugares até então desconhecidos. Essa leitura da história não significa, todavia, que ela é incapaz de construir verdades sobre determinados objetos. Significa, apenas, que ela não constrói verdades inquestionáveis e atemporais. Ao contrário, o conhecimento histórico, a fim de se aperfeiçoar, deve estar em constante questionamento, pois há sempre novas problematizações a serem feitas e novos caminhos a serem descobertos.

Nesse sentido, quando a história é pensada de forma compartimentada, estanque e cristalizada, ela passa a ser um mero elemento reproduzido sem qualquer tipo de questionamento e problematização. Não à toa nossos livros didáticos se apresentam cheios de etnocentrismos, anacronismos e lugares comuns. Essa construção, entretanto, não surge por si mesma. Ela é fruto de concepções e abordagens históricas que fazem parte do discurso hegemônico e que, portanto, trabalham a história como um elemento de perpetuação da ignorância e, consequentemente, da dominação.

O perigo que uma abordagem crítica sobre a história oferece é tão grande que constantemente vemos as disciplinas que de algum modo se relacionam com ela sendo atacadas. Para os grupos hegemônicos, se for para pensar historicamente, que seja de modo acrítico e atemporal, sem relação com o presente e os anseios que ele apresenta, tampouco com as experiências históricas que cada sujeito humano possui.

A consequência de uma história acrítica é a cristalização do passado, sobretudo em relação às experiências envolvendo grupos populares, o que produz um conhecimento histórico, não raras vezes, caricato e bastante questionável; gerando também, a reprodução de discursos amplamente difundidos, mas que não possuem qualquer crivo histórico.

É também a reprodução de mentiras transvestidas de verdades científicas e a repetição das tragédias em nosso teatro do bem e do mal. Não como farsas, mas como tragédias. É viver no escuro, sem ter segurança de onde se está pisando, de modo a cair constantemente em armadilhas plantadas pelo sistema. É não refletir sobre as permanências de processos tão dolorosos da nossa história. É não permitir que a história seja vista de baixo, da matéria humilde e humilhada, da vida obscura e injustiçada, dos sussurros silenciados, como disse o poeta Ferreira Gullar.

Há de se ter em mente, dessa forma, que a memória, matéria da qual se faz a história, é um espaço de luta política e, portanto, é espaço de conflitos, lutas e contradições. O que precisamos, para lutar, é desenvolver a consciência de que a história deve ser apropriada e submetida a problematizações em todos os seus poros. Enquanto não fizermos isso, a história continuará a ser repetida, ora como farsa, ora como tragédia. E nós continuaremos a viver no escuro, sem enxergar de modo historicizado os problemas que a que somos acometidos cotidianamente, e sem enfrentar a nossa “herança pesada e renitente”.

 

PS: Deixo como recomendação cinematográfica, para ajudar na reflexão do texto, a animação brasileira, produzida pela Buriti Filmes, “Uma história de amor e fúria”. O filme, além de tecnicamente ser muito bem produzido, apresenta uma leitura bastante interessante sobre a história brasileira. É dele, inclusive, que retirei o título do texto. Aliás, bastante elucidativo sobre o momento pelo qual passamos.