O livro Tempo é Dinheiro (Too Much For That) foi lançado em 2012, e aqui no Brasil foi lançado pela editora Intríseca em uma bela edição. Tal obra foi elogiada pela crítica e até mesmo o Washington Post, um dos jornais mais famosos, disse “um romance extraordinário, que vai abalar e transformar o leitor”. Nesse sentido, podemos afirmar que a leitura, embora pesada e obscura, nos faz refletir sobre os mais diversos assuntos: doença, sistema de saúde americano, masculinidade, consumismo, depressão, suicídio, doenças hereditárias como a Disautonomia Familiar, e etc.
Cabe aqui um notável elogio a autora Lionel Shriver. Ela já recebeu o Prêmio Orange de 2005 pela publicação do livro Precisamos Falar Sobre Kevin que, diga-se de passagem, é realmente brilhante. Lionel sabe como pouquíssimos que o poder da combinação entre literatura e denúncia social é necessária, urgente. Com um talento único, ela sabe como nos tocar e fazer de seus personagens seres humanos viscerais, terrivelmente reais.
Podemos acompanhar, durante a leitura de Tempo é Dinheiro, a vida cotidiana de duas famílias que são próximas devido o laço de amizade entre eles. São famílias comuns, provavelmente de classe média/alta, com problemas semelhantes aos nossos: dívidas, dificuldade na criação dos filhos adolescentes, questões sexuais, conflitos conjugais, assuntos de doenças e enfim. Aliás, em uma dessas famílias, temos uma adolescente de 16 anos, Flicka, que possui a Disautonomia Familiar (ou síndrome de Riley-Day) – uma doença hereditária, gravíssima e que tem como características básicas a absoluta insensibilidade a dor, ausência total de sensações como calor/frio, etc. E conseguimos observar de perto como é a vida dessa jovem menina, seus pensamentos e sua raiva por estar nessa condição.
Obviamente, os pais de Flicka (Carol e Jackson) se atolam em dívidas para cobrir todos os gastos com médicos, consultas, remédios, internações constantes. O grande problema não são os gastos em si, e sim o fato de nenhum dos dois terem altos salários que possam suportar as despesas. Não são apenas os dispêndios com as necessidades de Flicka, mas também a hipoteca, cartão de crédito, alimentação, escola das filhas, e por aí vai. Além de Flicka, o casal também tem outra menina chamada Heather, que é mimada (no sentido de protegida) e toma diariamente um placebo para que não se julgue tão diferente de sua irmã doente. Importante mencionar que Heather já pode ser considerada obesa na infância, e isso demonstra uma tentativa de Lionel de falarmos sobre esse tópico tão preocupante nos Estados Unidos.
O outro casal, Glynis e Shep, vivem juntos há alguns bons anos e possuem dificuldade no diálogo com o filho adolescente que faz parte do “movimento” chamado hikikomori, em que os jovens se isolam completamente do mundo em seus quartos. Inclusive, alguns especialistas afirmam que esse tipo de tendência esteja afetando esse grupo de jovens causando, infelizmente, transtornos sérios como o sono irregular, ansiedade, fobias e até mesmo podendo levar ao suicídio. Shep já foi, no passado, dono de seu próprio negócio: uma firma local de serviços de casa, o conhecido como “faz-tudo”. Ele enriqueceu dessa forma, e desde muito novo desejava guardar dinheiro para conseguir viver uma Outra Vida, uma vida sem trabalho, com expensas mínimas, em outro país e sem nenhum tipo de pressão social/política.
Em dado momento, ele vende essa empresa e abre uma poupança para juntar tudo que conseguiu poupar em todos esses anos e também agregar o valor da venda de seu empreendimento. Finalmente, ele viajará para uma ilha localizada no arquipélago de Zanzibar e viverá a Outra Vida. Os planos são cancelados porque sua esposa, Glynis, descobre um câncer perigoso (mesotelioma) e, como o plano de saúde não cobre tudo que é necessário para trata-la ou cura-la, ele terá que usar toda economia para tal tarefa.
Essencialmente, é sobre isso que o livro se trata, porém as análises feitas por Lionel são muito mais acentuadas. Falar sobre o sistema de saúde americano, por exemplo, é um tema complicado porque gera debates políticos mal resolvidos até hoje. Para entendermos um pouco melhor devemos saber que, distintamente do Brasil, lá não existe um SUS (Sistema Único de Saúde) e os programas sociais que abrangem os mais pobres são falhos. Depender do sistema de saúde americano é algo realmente complicado, e os valores dos tratamentos são caríssimos e muitos não podem bancar.
Mencionar que, um dos personagens realiza uma operação de aumento de pênis de valor exorbitante, é bom para trazer a questão da masculinidade frágil e contaminada pelo machismo para a roda. Sabe-se que, apesar de as mulheres sofrerem severamente com as consequências do machismo e da misoginia todos os dias, alguns homens também sentem na pele o peso de serem “machões”, duros na queda, de não demonstrarem sensibilidade. Ademais, essa cirurgia proporciona ao personagem em questão o fim de seu casamento, a perda de apetite pela vida aliada a outros impasses.
O câncer é uma doença violenta, complexa, árdua e que envolve todos os membros da família indiretamente ou diretamente. Com a personagem Glynis, uma mulher forte e com opiniões destemidas, podemos sentir como a empatia nos é necessária e benéfica. É envolvente vê-la buscando uma maneira de lidar com o mesotelioma, de jamais desistir dos tratamentos, e talvez o mais importante: de não se fazer de coitada, de não deixar o câncer vencer, de não abaixar a cabeça.
Tempo é Dinheiro, assim como afirmou o Washington Post, é capaz de transformar a vida e as percepções de mundo do leitor. Acredito que seja humanamente impossível ler um livro tão arrebatador e não pensar em todas essas temáticas. Não saberemos se é proposital ou não, mas me parece que Lionel descreve essas famílias a aborda todos esses pontos para nos sentirmos desconfortáveis. Durante a leitura, o sentimento de impotência perante aquelas pessoas, aquelas angústias, aquelas dores é intenso e isso deixa o leitor totalmente mergulhado na obra.
Mais uma vez, Lionel acertou em cheio e trouxe uma obra memorável para muitos de seus leitores. Pensar que qualquer um de nós poderia viver dentro desse romance chamado Tempo é Dinheiro é assustador e, ao mesmo tempo, interessante. Milhões de americanos, brasileiros, de pessoas estão levando suas vidas de forma semelhante aos personagens, e nossas autoridades políticas muitas vezes não colocam em pauta esses tópicos. Com uma honestidade pulsante, uma transparência desoladora, Lionel nos faz olhar para nós mesmos e nossa sobrevivência em um mundo praticamente disfuncional.
Tempo é Dinheiro merece ser lido. Merece ser reconhecido.