No século XVIII, o filósofo inglês Jeremy Bentham criou a ideia do panóptico, isto é, um modelo arquitetônico que permitiria o controle do todo por apenas um indivíduo, que tudo ver e tudo sabe, no melhor estilo Big Brother da obra “1984” do George Orwell. Dessa maneira, qualquer instituição que quisesse – presídios, fábricas, escolas, universidades, etc. – poderia, a partir da sua estrutura, construir condições para a vigilância e, consequentemente, controle de todos aqueles que fariam parte do seu microcosmo. Após mais de dois séculos e a consolidação da sociedade industrial que outrora se iniciava, percebemos que o modelo do panóptico também se transformou, conseguindo exercer com maior capacidade a vigilância total a que se destina.
O desenvolvimento ou evolução do modelo do panóptico, a que observamos, se deve em grande medida ao desenvolvimento das novas tecnologias, que potencializaram a vigilância e permitiram o controle de cada passo que damos, seja ele real, seja virtual. Obviamente, podem existir fatores positivos nesses modelos de organização de espaços sociais, entretanto a utilização dos mecanismos de vigilância parece estar sendo aplicada muito mais no sentido de determinação daquilo que pode ou não ser feito. E aqui, não estamos nos referindo a aspectos jurídicos ou éticos necessários a qualquer sociedade, mas sim, do estabelecimento de uma norma padrão de conduta, a qual nenhum indivíduo pode se desviar, embora paradoxalmente a liberdade seja o grande pilar da sociedade em que vivemos.
Sendo assim, os mecanismos de vigilância são também utilizados como instrumentos de condicionamento, a fim de que todos os indivíduos passem a exercer os mesmos comportamentos. Deixa-se, portanto, de haver o exercício da subjetividade e do arbítrio do sujeito, que ao deixar de pensar e agir por si mesmo, passa a pensar e agir de acordo com o conjunto de normas estabelecidas, integrando um rebanho de indivíduos sem qualquer traço idiossincrático. Como consequência dessa vigilância e condicionamento, ocorre a punição daqueles que insistem em manter ou tentar manter o seu eu como sujeito de seus pensamentos e ações.
Diante disso, passa a ocorrer a mortificação do “eu”, que deixa de existir para que a vontade do todo seja feita. O ser autônomo, assim, morre para que surja o ser institucionalizado, ou seja, o indivíduo completamente anexado pelas instituições sociais, administradoras do seu comportamento e guias do seu espírito. Nesse sentido, podemos lembrar de instituições totais, tais como hospícios, prisões e campos de concentração. Nesses locais, há uma padronização que retira a identidade dos sujeitos, de tal maneira que o indivíduo deixa de ser pessoa para ser um número. O filme “Um Sonho de Liberdade” retrata isso de forma magnífica, em que após institucionalizados (e é exatamente esse termo que é usado no filme), os detentos tornam-se inaptos a viver autonomamente, sem que estejam sem o controle e a “administração” do presídio.
Todavia, não é apenas na ficção que encontramos referências, o holocausto alemão é um grande exemplo, bem como, o holocausto brasileiro, praticado no “Hospital Colônia” em Barbacena/MG e exposto em livro e filme pela jornalista Daniela Arbex. Outro exemplo extremamente atual se refere aos refugiados, afinal, os campos de refugiados abrigam sujeitos despersonalizados, sem qualquer resquício de identidade, ou como define Bauman, pessoas transformadas em uma grande massa sem rosto. Dessa forma, o que acaba por acontecer, quer em instituições totais, quer na sociedade como um todo, é o exercício da vigilância como forma de dominação e punição, que se torna possível em função da mortificação do eu e da perda da identidade dos indivíduos, os quais passam a apenas se “enxergar” como parte de um grande bloco homogêneo.
Essa perda da dimensão da subjetividade faz com que o controle passe para a interioridade e, assim, deixe até mesmo de ser necessário, pois estando dentro do próprio indivíduo, ele se torna permanente e, de fato, total. Nesse mesmo prisma, todo sujeito que se afasta da norma passa a ser visto como louco e, portanto, perigoso. O “louco”, entretanto, nada mais é do que o sujeito desviante, que pensa por si e exerce autonomia sobre o seu intelecto. É o ser contemplativo, que observa e analisa o que acontece ao seu redor. É, por conseguinte, um ser desajustado, que já não encontra lugar em um mundo que não tolera a “desordem”, necessitando ser “readaptado” ou tornado inimigo do todo em casos mais extremos, exatamente como acontece em “1984”.
O que se constata disso é que há a supressão da esfera individual pertencente a todo sujeito, para que haja uma padronização normativa, a qual é determinada por um grupo que evidentemente não sofre as mesmas imposições. Esse grupo é formado pelos sujeitos que estão no controle do panóptico e, portanto, exercem o seu poder de vigilância e punição, para lembrar Foucault. Desse modo, há uma estigmatização de todo aquele que foge às regras e que insiste em valer-se da sua razão para dizer que dois e dois são quatro, ainda que na norma vigente conste que o valor de tal soma é cinco.
Assim sendo, por mais que o estabelecimento de normas éticas e jurídicas sejam importantes e necessárias para o melhor funcionamento da sociedade, é preciso que essa vigilância, controle e punição também possuam limites que preservem a autonomia dos indivíduos, que pretendem e devem se fazer sujeitos. Bem como, deve-se ter em mente que se os mecanismos supracitados funcionam na prática como formas de dominação a fim de que haja uma padronização social, a “insanidade” é definida pelo grupo que estabelece a norma, que – nessa ótica – invariavelmente nos leva para caminhos obscuros da razão e dos afetos.
Por isso, é necessário que busquemos reaver o tempo inteiro o nosso intelecto e reafirmar a nossa subjetividade, não no sentido que leva ao egoísmo, mas do que leva ao autoconhecimento e à autonomia, já que não existe humanidade que não passe pela liberdade e liberdade que não passe pela reflexão. Portanto, é por meio do exercício da individualidade (e não individualismo) que o homem se faz sujeito, pois quanto mais o indivíduo desperta para a sua condição de sujeito, menos ele deseja (ou permite) se adequar.