Embora seja um conceito difícil de se definir, sobretudo em uma perspectiva encerrada, haja vista as inúmeras possibilidades de interpretação em torno da liberdade, parece bastante evidente, ao menos para quem se dispõe a observar, que o modelo social que nos rege, com suas fórmulas determinantes acerca de como deve-se organizar a vida, não nos ajudar a concorrer para a liberdade, ainda que o conceito permaneça difuso.
A sociedade de consumo implementada pelo capitalismo criou uma cultura hedonista, em que os fins últimos das ações humanas devem se dirigir para o prazer através do consumo. Nesse sentido, a liberdade a que os sujeitos, em regra, possuem destina-se a tão somente poder escolher os caminhos de satisfação, êxtase e delírio contidos na saciação dos seus desejos. Ou seja, há uma imbricação entre liberdade e conquista do prazer/realização de desejos, sendo estes, evidentemente, alcançados apenas dentro da roda contínua do consumo.
A partir desse paradigma, a possibilidade do sujeito gozar da liberdade e do seu par direto, a felicidade, deixa de existir a não ser que se encontre dentro dos parâmetros estabelecidos pela cultura consumista. No entanto, em que medida pode-se estabelecer como livres, indivíduos que cumprem à risca determinações enclausurantes de terceiros?
A fim de que a leitura se torne mais coesa, tomemos que a liberdade seja a capacidade de o sujeito autonomamente ser capaz de discernir sobre as coisas que o cercam e deliberadamente fazer escolhas. Diante disso, retomo a questão: como é possível determinar a existência e aplicação da liberdade ante determinações prévias sobre o que fazer, o que vestir, onde morar, o que comer, como agir, onde morrer, isto é, sobre tudo aquilo que cerca nossas vidas?
É no mínimo paradoxal a construção da ideia de liberdade e, consequentemente, felicidade, a partir de conceitos que restringem enormemente a capacidade de ação, reflexão e deliberação humana, haja vista que ter a possibilidade de escolher entre pagar à vista ou no débito, comer no MC ou no Bob’s, usar Calvin Klein ou Lacoste, e considerar isso o ápice de ser livre é bastante contraditório.
É evidente que em uma sociedade de mercado, as trocas são necessárias e importantes. No entanto, transformar isso no sentido exclusivo da existência implica a formação de vidas voltadas para o consumo, em que o único modo de se atingir a satisfação e a plenitude é consumindo, regozijando-se em um ciclo contínuo de oferta e demanda de objetos materiais, tão descartáveis quanto quem os consome, já que em um mundo que se oferece como uma grande maçã, apetite dos nossos desejos, nada possui valor. Nada, nem ninguém.
Em outras palavras, na medida em que todos destinam-se ao cumprimento da liberdade de devorar o mundo, como se este fosse um shopping center gigante, há um processo de humanização das coisas e coisificação dos seres humanos, de tal maneira que, no fim das contas (ou compras?), tornamo-nos todos apenas números, identificados e prontos para trocas, de acordo com o valor que a nossa capacidade (liberdade?) de consumo permite.
Não haveria problema algum nisso, já que não pretendo encerrar à chave o conceito de liberdade, se a fórmula mágica da sociedade de consumo não provocasse estragos maiores do que a sua capacidade de sanar, como o aumento progressivo nos casos de doenças psicossomáticas, como a depressão, a ansiedade e a síndrome do pânico, além de outras doenças engatilhadas a partir do estresse profundo que viver em uma linha contínua de produção, consumo e descartabilidade provoca.
Essas problemáticas por si só, embora existam outras, já são suficientes para se colocar em xeque um modelo que se pretende perfeito, completo e universal, mas, na realidade, se mostra uma ditadura feroz, que pune a ferro e fogo, aqueles que não seguem às suas ordens. Talvez seja difícil perceber as grades e os muros das gaiolas da liberdade da cultura hedonista e consumista, que, com o perdão do trocadilho, nos consome, uma vez que os discursos que a afirmam como verdade e oitava maravilha do mundo nem sempre são tão claros e vistos a olho nu.
Para não ser ludibriado e ficar batendo asas sem sair do lugar, é preciso de lupas que amplifiquem o olhar, para que além de ver, possamos também enxergar, e não ficar cegos diante de luminosidades, que como no cinema, querem apenas direcionar nossa visão para que algo latente, mas escondido, não seja visto e questionado.