Texto de Juliana Santin
Começarei o texto com um diálogo do livro Até mais, e obrigado pelos peixes!, da série O Guia do mochileiro das galáxias, de Douglas Adams. O diálogo acontece após a chegada de um robô em uma nave espacial que pede que o levem ao lagarto chefe.
“– Ele vem de uma democracia muito antiga, sabe…
– Você está querendo dizer que ele vem de um mundo de lagartos?
– Não – respondeu Ford (…). Nada assim tipo isso tão compreensível. No mundo dele, as pessoas são pessoas. Os líderes é que são lagartos. As pessoas odeiam os lagartos e os lagartos governam as pessoas.
– Ué – comentou Arthur -, achei que você tinha dito que era uma democracia.
– Eu disse – afirmou Ford. – E é.
– Então – quis saber Arthur, torcendo para não soar ridiculamente estúpido -, por que as pessoas não se livram dos lagartos?
– Isso sinceramente nunca passou pela cabeça delas – disse Ford. – Como elas têm direito de voto, acabam supondo que o governo que elegeram é mais ou menos parecido com o governo que querem.
– Quer dizer que eles realmente votam nos lagartos?
– Ah, sim – disse Ford, dando de ombros -, é claro.
– Mas – perguntou Arthur, sem medo de ser feliz – por quê?
– Porque, se deixam de votar em um lagarto – explicou Ford -, o lagarto errado pode assumir o poder. (…) Algumas pessoas dizem que os lagartos são a melhor coisa que já lhes aconteceu – explicou ele. – Elas estão completamente enganadas, é claro, completa e absolutamente enganadas, mas é preciso que alguém tenha a coragem de dizer isso.”
Será que Douglas Adams estava falando do Brasil? Obviamente, não. Adams era britânico, faleceu em 2001 e a série do Mochileiro começou a ser realizada em 1978. Isso significa que ele via pessoas votando em lagartos há 40 anos. Por que votamos em lagartos? Por que os lagartos estão no poder?
Eu já andava pensando bastante em Thomas Hobbes diante desse clima de guerra de todos contra todos que se instaurou nessas eleições nesse ano no Brasil. Em sua obra mais conhecida, O Leviatã, Hobbes faz uma defesa do Estado absolutista usando o seguinte argumento: sem a presença do Estado, o homem vive em estado de natureza.
Mas o que significa isso? No estado de natureza, as pessoas vivem à mercê dos seus apetites e afetos, buscando acima de tudo preservar um direito que lhe é natural, que é o direito à vida. Dessa forma, homens em estado de natureza podem fazer o que bem entenderem em nome de preservar sua própria vida. Isso significa que, movidos pelo medo da morte, os homens vivem em uma constante guerra de todos contra todos.
O medo de morrer leva a essa busca incessante por um poder maior sobre o outro – afinal, no estado de natureza, vence o mais poderoso. O Estado absolutista, para Hobbes, surge como a única opção de garantir a segurança das pessoas, ainda que, em troca, elas precisem abrir mão de sua liberdade.
Pensando sobre isso e tentando entender a presença dos lagartos no poder, concluí que o exercício de um poder tão grande como estar à frente do Estado de uma nação acaba trazendo à tona nessas pessoas algo muito próximo do estado de natureza de Hobbes — o que acaba por torná-las lagartos.
Com o poder nas mãos, aplaca-se o medo da morte e surge um desejo cada vez maior de manter esse poder nas mãos. Dessa forma, os lagartos passam a ter como objetivo principal manter o poder, custe o que custar.
As pessoas que não estão no poder, normalmente, estão dominadas e pacificadas, pois sabem que o Estado garantirá sua segurança. No entanto, a partir do momento que o Estado deixa de garantir a segurança pública, passa a ser um Estado falido. O medo volta cada vez mais forte nas pessoas e o estado de natureza volta a aflorar, a ponto de grande parte estar disposta a trocar sua liberdade pela suposta segurança que um Estado mais rígido oferece.
Como podemos, então, deixar de ser dominados por esses impulsos tão primitivos, por esse medo da morte violenta, e ter um controle um pouco maior, tirando os lagartos do poder e colocando pessoas no poder? Do que precisamos, afinal, para sermos pessoas? O que diferencia os seres humanos dos outros animais?
Eu entendo que uma das grandes ferramentas que nós, seres humanos, temos para que deixemos cada vez mais para trás o estado de natureza é nossa capacidade de termos pensamento racional. Assim, é somente através do uso da razão que conseguimos compreender melhor nossos apetites para que possamos controlá-los.
Nós já nascemos equipados para termos pensamento racional. Nosso cérebro se desenvolveu para isso. No entanto, o desenvolvimento da razão precisa de treino, como qualquer outro tipo de desenvolvimento. Cada vez mais, convenço-me de que há a necessidade de treinarmos o pensamento racional. Se não treinamos o pensamento crítico e complexo, ficamos atrofiados em nossa capacidade de pensar. O ato de pensar é como qualquer outra função.
É necessário decidir pensar ativamente, ou seja, querer pensar de forma complexa. Assim como treinamos o corpo fisicamente, precisamos treinar o cérebro. Somente um desenvolvimento de nossa capacidade racional de deliberar contra alguns dos nossos afetos é capaz de nos fazer controlar esse estado de guerra de todos contra todos.
Afinal, assim como não adianta querermos que uma pessoa que é totalmente sedentária corra uma maratona, é impossível exigir o mesmo do pensamento! Não adianta querer que uma pessoa que não treina o pensamento crítico, que só consome informações vindas de redes sociais, de grupos de WhatsApp e de televisão, que não fala muito mais do que “kkkk”, de uma hora para outra, tenha um discernimento muito grande sobre ciência política, economia, fascismo, comunismo. Para que as pessoas possam estar preparadas para um momento de crise de valores, como está acontecendo nessa eleição, elas precisam estar treinadas.
Penso que o ser humano utiliza grande parte de sua capacidade de pensamento racional em busca de um enriquecimento material ou aumento de poder. No entanto, no momento que usamos nossa razão para ter mais dinheiro ou qualquer outro tipo de poder, continuamos sendo lagartos.
O ser humano desenvolveu a capacidade de pensamento para poder sobreviver em um ambiente inóspito onde seu corpo fraco, comparado ao dos outros animais predadores, não dava conta.
Porém, o ambiente atual é muito diferente, mas continuamos trabalhando incessantemente nosso cérebro com o único objetivo de ter mais poder (aquisitivo, na maior parte das vezes, mas todo tipo de poder). E o que vemos é um cenário de competição acirrada e de olho por olho, dente por dente, vencendo sempre o mais forte. Exatamente como na natureza.
Mas isso não precisa ser assim. Podemos ser cada vez mais “humanos” para nos distanciarmos cada vez mais desse estado de natureza. Precisamos de humanidade, amor, solidariedade, e, para isso, é necessário controlarmos melhor nossos impulsos e paixões. Isso sempre virá pela razão. Para isso, precisamos abrir a nossa mente, consumir informações de qualidade, informações variadas, fontes diversas. Precisamos viajar, conhecer lugares e pessoas. Precisamos ter repertório.
Fazendo uma comparação, é como se eu precisasse preparar um alimento, mas só tivesse à minha disposição três tipos de ingredientes. Não há como formular alimentos variados. Pior ainda se os ingredientes que tenho à disposição são de qualidade duvidosa e sempre com o mesmo sabor. A comida preparada terá qualidade duvidosa e será sempre igual.
O mesmo vale para nossos pensamentos. Se só temos como “ingredientes” informações ruins, vindas de fontes duvidosas, e que dizem sempre a mesma coisa, nosso pensamento fatalmente será ruim, raso e sempre o mesmo. Precisamos abrir nossa mente para ingredientes mais complexos, melhores, variados. Precisamos ter à nossa disposição ingredientes de qualidade para formularmos pensamentos de qualidade.
Assim, é extremamente necessário para que tiremos os lagartos do poder e para que deixemos de virar lagartos diante de crises que aprendamos a desenvolver nossa capacidade de pensamento, raciocínio lógico, compreensão dos nossos afetos e paixões.
Isso precisa ser feito de uma forma ativa, porque a tendência do nosso cérebro é de economizar energia. Se for esperar que surja a vontade, é o mesmo que esperar que vamos acordar loucos de vontade de sair correndo de manhã. Isso não vai acontecer. Mas é necessário fazer!
Se nunca exercitarmos nosso corpo, chegará uma hora que até subir um pequeno lance de escada nos deixará exaustos. É a mesma coisa com o pensamento. Se não treinamos o pensamento, não conseguimos nem terminar um raciocínio simples. E tudo fica com o mesmo sabor e a mesma qualidade duvidosa.
Precisamos de mais humanos e de menos lagartos. E não precisamos de um estado absolutista para fazer isso. Nós podemos, devemos, precisamos nos tornar cada vez mais humanos, menos escravos de nosso estado de natureza e mais livres. E a chave para isso está dentro de nós.