*Por Alberto Silva

Em Vigiar e Punir, ao se referir a aplicação da tecnologia de poder, alinhada à administração política, como modelo de sanção da contemporaneidade, Foucault cita o fato de que nos presídios modernos se tornou frequente a presença de psiquiatras e psicólogos. Não são mais os carrascos que cortam os pescoços dos detidos com machados e guilhotinas, para mostrarem ao público o exemplo, que acompanham os momentos mais tensos na vida de um preso; mas profissionais com conhecimentos técnicos que os aplicam no intuito de controlar os corpos, discipliná-los e socializá-los, uma vez que interessa mais as forças produtivas a utilização e o esquandrinhamento de mão-de-obra barata ou sem custo durante ou após ao cumprimento da pena do que o desperdício de corpos “não-regrados”. O sistema penal teria evoluído e se tornado mais “humano” nos séculos XVIII e XIX, mas não apenas por conta da ascensão do humanismo. É preciso que o regime capitalista institucionalize a atrocidade em formas incorpóreas, de tal modo a suprimir as ilegalidades contra a propriedade e fazer com que dominados e dominadores incorporem as regras de ouro sem se dar conta da própria existência delas, generalizando a punição para todos os âmbitos da vida, anteriormente e majoritariamente não regulados pelo código penal propriamente dito.

Diante disso, para o filósofo francês a justiça moderna envolve assim não somente a pena em si, mas uma série de fatores extrajudiciais que se relacionam ao modelo de sociedade que possuímos. Lendo esse brilhante autor, lembrei de comovente reportagem que havia tido acesso alguns dias antes. Com base na matéria, é comum nos presídios brasileiros a medicalização dos presos por meio de psicotrópicos, principalmente aqueles cuja composição incide mais fortemente no organismo como Clonazepam e Prozac que se tornaram moda nas terapias para jovens a partir da década de 1990. Quando da chegada dos clínicos gerais nas penitenciárias, geralmente uma ou duas vezes por semana, os detentos o procuram alegando dores, tontura, dificuldade para comer e dormir etc. A resposta muitas vezes acaba sendo a mesma por parte do médico: “Isso ai é ansiedade”. Logo são prescritas drogas antidepressivas (às vezes sem necessidade de prescrição), geralmente usadas para tratamento de ansiedade. (E nesse ponto o colunista tem experiência no uso de algumas mais leves).

A “oportunidade” no uso de tais medicamentos vem a calhar, já que a depressão é um problema comum para quem fica enclausurados em celas. Obviamente que o melhor tratamento para problemas assim envolve outros estímulos como ida ao psicólogo, melhor alimentação, exercícios físicos e para os “crentes” auxílio espiritual: algo do qual quem está encerrado e sob vigilância quase nunca dispõe. O problema central é que as receitas são atribuídas de modo indiscriminado, ignorando outras disfuncionalidades em prol da atribuição de uma patologia psíquica. Nos manicômios judiciais, essa situação se multiplica em cem vezes. Há aqui desprezo e falta de ética iminentes para com a dignidade humana, independente de quão cruéis sejam esses humanos (afinal alguém pode dizer que o tratamento convém a “marginais”.) Porém tal quadro desvela que para além da má vontade dos médicos e de uma certa práxis deplorável do hiper encarceramento nacional, há uma razão implícita que intenciona manter a tranquilidade no presídio dopando os frequentadores do local. Nada melhor do que um médico – que com seu saber legitima o poder, nos termos de Foucault – para oferecer a solução: remédios cujos efeitos mais latentes, principalmente nos primeiros dias de ingestão, são o excesso de sono e a irritação, por vezes a falta de apetite ou o excesso dele. Por ironia do destino, muitos presos acabam de fato adoecendo psiquiatricamente após suas estadas na prisão em função do ambiente sombrio.

Nessa toada, os presídios brasileiros não ficam devendo a outras instituições tradicionais como a escola, a família, a Igreja etc. Todas reproduzem uma ideologia de disciplinamento de corpos a partir da manutenção de relações anti democráticas, onde existe a figura que manda e aquela que obedece, sendo também a figura que obedece capaz de emanar relações de poder para outros polos. Mas não é só essa a semelhança. A medicalização, pasmem, se difundiu nos últimos anos como parte da tecnologia de poder, que foi descrita por um dos maiores intelectuais do século passado, graças a uma ofensiva publicitária da indústria farmacêutica e de um poderoso lobby que derruba regulações e gera novas pretextos para gastos nas farmácias. Basta para isso ver o caso do TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade). Embora essa seja uma síndrome que de fato se aplique a várias crianças, há uma controvérsia entre a quantidade extensa de diagnósticos falsos e um número modesto de diagnósticos verdadeiros. Muitas vezes coisas que seriam vistas como partes da infância, passam a ser expostos como elementos patológicos. Mas não é só a “brincadeira” que vira fato clínico. Nossas mínimas dores passam a ser seguidas de bulas enigmáticas, haja visto que o espaço para alternativas naturais é diminuto ou o reconhecimento de que as estruturas político-econômico-sociais são parte da culpa do nosso adoecimento é inexistente. Na contramão da denúncia, a medicalização da vida reforça essas estruturas, na medida em que nós temos que aceitar ou suportar drogados a ordem instituída. Esqueçamos os efeitos colaterais e os danos permanentes dos químicos. E culpemos a nós mesmos quando nada der certo. Afinal, é para isso que fomos treinados, conforme a subjetividade neoliberal do “empresário de si mesmo”.

Os presídios brasileiros, que se enquadram em uma parte da descrição do sistema penal utilizado como modelo por Foucault, são, portanto, a reprodução em um microcosmo de uma mesma tecnologia de poder e de um mesmo experimento aplicado em larga escala na sociedade. Se medica não para curar, mas para viver. Afinal como é possível, ter a concentração para o trabalho ou o estudo em excesso? É comum o uso do Adderall (Anfetamina) nas competitivas universidades norte-americanas ou no mundo corporativo. Me digam como se suporta o sofrimento diário das tragédias cotidianas, veiculadas minuto a minuto nos meios de comunicação? Se não há indiferença e sobra sensibilidade, precisamos ter claro que o medo, o pânico ou mesmo estados depressivos são inevitáveis: assim buscam-se comprimidos, pequenos ou grandes, laranjas ou azuis, cápsulas ou mastigáveis. Respondam como se aguenta a tormenta doméstica, as trevas das ruas e o transbordamento das mágoas? A resposta pode advir de carimbos e mais carimbos de especialistas, atentos ao último lançamento das corporações globais, que testam seus fármacos em ratinhos.

Talvez não tenhamos a mesma maturidade emocional de outrora e fomos ensinados a procurar nos médicos a resposta para tudo. Mas é importante dizer que quando estamos em tempos de precarização das relações de trabalho, de aumento da insegurança econômica e de instabilidade política certamente se exponencializa o número de pessoas atingidas pelo “mal do século” (esqueçam a balela de que saúde mental depende só da “biologia corporal”), principalmente as pessoas vulneráveis a pobreza e à discriminação, justamente as que tem mais dificuldade até para obter remédios. Mas saibamos separar isso e não nos enganemos com o ardil das novas formas de controle social regadas com o lema utilitarista de que tudo deve ser aceito para o “bem” e para maior “felicidade” do indivíduo e da sociedade. Se nos querem felizes, medicados; se nos querem tranquilos, medicados; se nos querem sossegados, medicados, mas produzindo e obedecendo; certamente é porque as reflexões foucaultianas irão ainda nos assombrar por eras; agora com o auxílio e a sofisticação das novas tecnologias. Novos presídios, não gradeados e de ferro. Novos edifícios e panópticos, não manchados de sangue. Se hoje a punição nas democracias é incorpórea, valendo-se da suspensão dos direitos e de pequenos poderes adicionais, é porque a obediência não necessariamente precisa ser sob a égide dos chicotes.

Referências Bibliográficas

FOUCAULT, Michel. A Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir Nascimento da Prisão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

MALHOTRA, Aseem. Why modern medicine is a major threat to public health. The Guardian. https://www.theguardian.com/society/2018/aug/30/modern-medicine-major-threat-public-health. Acesso em: 30/08/2018.

SUDRÉ, Lu. Presídios utilizam medicação como estratégia de controle social. Brasil de Fato. https://www.brasildefato.com.br/2018/06/15/presidios-utilizam-medicalizacao-como-estrategia-de-controle-social/. Acesso em: 28/08/2018.

Recomendações Cinematográficas

Título: A Casa dos Mortos
Direção: Débora Diniz
Nacionalidade: Brasil
Duração: 24 minutos
Ano: 2009

Bubu é um poeta com doze internações em manicômios judiciários. Ele desafia o sentido dos hospitais-presídios, instituições híbridas que sentenciam a loucura à prisão perpétua. O poema A Casa dos Mortos foi escrito durante as filmagens do documentário e desvelou as mortes esquecidas dos manicômios judiciários. São três histórias em três atos de morte. Jaime, Antônio e Almerindo são homens anônimos, considerados perigosos para a vida social, cujo castigo será a tragédia do suicídio, o ciclo interminável de internações, ou a sobrevivência em prisão perpétua nas casas dos mortos. Bubu é o narrador de sua própria vida, mas também de seu destino de morte.

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Título: Safe
Direção: Todd Haynes
Nacionalidade: EUA/ING/IRL
Gênero: Drama
Duração: 119 minutos
Ano: 1995

Mulher um dia fica doente sem motivo aparente. Seu médico não consegue encontrar o motivo e sugere que possa ser apenas coisa de sua mente. Quando seu marido passa a concordar com o médico, ela tem que lutar contra a descrença de todos para poder se curar.

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Título: Take Your Pills
Direção: Alison Klayman
Nacionalidade: EUA
Gênero: Documentário
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Ano: 2018

 

O uso de medicamentos controlados com o objetivo de melhorar o desempenho intelectual vem crescendo. Mas o que impulsiona essa tendência?