Em uma das suas mais incríveis reflexões, Clóvis chama nossa atenção para como desperdiçamos nossas vidas pensando sempre no futuro e esquecendo de viver o agora. Abaixo você pode ler a transcrição da fala de Clóvis.

“Insisto dizer que desde crianças fomos preparados e adestrados para amar à moda de Platão. Sempre estudei no Colégio dos Jesuítas em São Paulo, e a coordenadora dizia que o primário era a preparação para o ginásio, que nós precisávamos desejar entrar no ginásio e ter amor pelo ginásio. Passaram-se quatro anos, e, finalmente, entramos no ginásio. Era como se tivéssemos todos os motivos do mundo para acreditar que naquele momento a vida valeria a pena, pois teríamos um professor para cada disciplina, não seríamos mais um bebezinho e teríamos discernimento. Haveria gozo e felicidade nessa fase. Mas apareceu uma professora que nos avisou que o ginásio era a preparação para o colegial, no qual precisaríamos aprender a ser adultos. No colegial, sim, não haveria uniforme e poderíamos escolher entre exatas, humanas e biológicas. Então ficamos mais quatro anos nos preparando para o colegial. Já eram oito anos de preparação para a vida.

Chegamos no colegial crendo que tínhamos todos os motivos para acreditar que naquele momento a vida valeria a pena. Iríamos estudar em outro prédio, onde só os adultos entravam – haveria de fato uma vida que ganhava nela mesma toda a sua razão de ser. Porém, entrou o coordenador e disse: “O colegial, como devem deduzir, é a preparação para o vestibular”. Entramos na universidade, e a idealização se iniciou novamente. No entanto, passando pelos corredores da universidade, descobrimos que era necessário entrar no mercado de trabalho, porque a faculdade não iria ensinar nada. Quando conseguíamos um estágio, dizíamos: “Agora ninguém me segura”.

Já eram mais de doze anos esperando, mas “agora vai”. No primeiro dia de estágio, alguém disse: “Sabe, estagiário, se você não for efetivado, não vai valer nada isso aqui”. E naquele momento o objeto de desejo passou a ser a carteira assinada, a efetivação. Depois de sermos muito explorados, conseguíamos a carteira assinada. Já eram dezessete anos. E por alguma razão começamos a desconfiar. No primeiro dia de trabalho, íamos com alegria, pois “a vida começou”. Mas então o chefe avisava que existiam quinze níveis na empresa, que estávamos no G-15, o pior de todos, e que enquanto não passássemos para o G-14 seríamos invisíveis. Ele explicou: “Para passar de nível, você persegue metas. Metas são como cenouras, as quais você corre para buscar e trazer para o chefe”. Quando percebemos, nossa vida está resumida em pegar e entregar cenouras. Vão se passar quinze anos para chegarmos ao G-8 (e o chefe no G-3).

Depois de trinta anos, fazem-nos uma festa, o que significa que “dançamos”. Fazem uma placa de agradecimento, mas seremos substituídos por alguém mais jovem – e mais iludido. Então começamos a dizer: “Quando eu me aposentar…”, porque aí sim a vida valerá a pena. Porém, nossa vida já está quase no fim. Decidimos comprar uma kombi ou uma casa em Serra Negra. Com oitenta anos, a família nos vê em nossos últimos dias de vida, ainda sendo possível que chamem alguém vestido de forma diferente, com um olhar sombrio, que diga: “Nada de tristeza, porque o melhor ainda está por vir”.

E teremos passado oitenta anos sem nunca termos tido coragem de levantar a mão para dizer que há algo errado no reino do amor de Platão, porque esta vida é um “saco sem fundo”. Não há saco para tanta cenoura, sempre haverá o que falta. E o que faz falta no mundo do consumo é o que ainda não compramos. Basta percebermos nas propagandas: ninguém diz para guardarmos o cartão e sermos felizes com o que compramos, porque o que adquirimos não vale nada, o que vale é o que ainda não adquirimos. Platão é triunfal, e o capitalismo aplaude o amor de Platão, porque ele é movido pelo o que falta. Do lado da produção, o lucro ainda não foi alcançado; do lado do consumo, ainda há bens a serem adquiridos. E a promessa da sociedade é que sempre haverá o que não temos ainda para que possamos nos deixar guiar por esta estrela guia que é a falta, a frustração e a perseguição do que nunca conseguiremos alcançar.”

Transcrição feita e adaptada pelo Provocações Filosóficas do trecho da palestra de Clóvis de Barros Filho.

Confira na íntegra: 

A promessa da sociedade é que sempre haverá o que não temos ainda para que possamos nos deixar guiar por esta estrela guia que é a falta, a frustração e a perseguição do que nunca conseguiremos alcançar.

Clóvis de Barros Filho é atualmente um dos mais requisitados palestrantes do Brasil. Suas aulas e palestras sobre ética já foram ouvidas por milhões de pessoas em todos os estados do país, e também no Uruguai, na França, no México, na Argentina, na Espanha, em Portugal, entre outros.

Doutor e Livre-Docente pela Escola de Comunicações e Artes da USP, o Professor Clóvis atua no mundo corporativo desde 2005, por meio de seu escritório, o Espaço Ética.  Tem como clientes empresas de todos os portes, de inúmeros ramos de negócios.