Em tempos de profunda crise social, econômica e moral, tornou-se cada vez mais comum o uso das aparências como estratégia para obter vantagens sobre os outros. Seja assumindo a imagem de sucesso para conquistar confiança e manipular, seja incorporando a figura de desvalido ou pedinte para inspirar compaixão e gerar lucro, o fato é que a manipulação da imagem tornou-se um recurso recorrente. Essa realidade nos leva a uma reflexão mais profunda: até que ponto a caridade é eficaz? E como distinguir quem está em situação de necessidade real daqueles que exploram a miséria como meio de vida?

É visível, sobretudo nos grandes centros urbanos, o aumento de pessoas que se posicionam em frente a mercados e semáforos, com olhares tristes e trajes desgastados, pedindo que os transeuntes comprem alimentos ou produtos básicos. Movidas por empatia, muitas pessoas cedem. No entanto, relatos recorrentes indicam que esses produtos são revendidos do lado de fora dos próprios estabelecimentos, em muitos casos para sustentar vícios, como o uso de drogas.

Esse tipo de atitude vem, em parte, como resposta a uma mudança de comportamento social: cada vez mais brasileiros resistem a doar dinheiro diretamente, preferindo contribuir com alimentos ou itens essenciais. Porém, mesmo essas formas de auxílio podem ser distorcidas. Isso nos leva à urgência de um olhar mais crítico e sensível: é fundamental buscar compreender minimamente o que levou o indivíduo àquela situação. Trata-se de alguém que está ali por necessidade, por falta de oportunidades ou por conveniência?

Dados do Cadastro Único de março de 2025 revelam que o Brasil conta com 335.151 pessoas em situação de rua, um crescimento expressivo se comparado aos 22.900 registrados em 2013 — um aumento de mais de 1.360% em pouco mais de uma década. Entre as capitais com maiores índices estão São Paulo (96 mil), Rio de Janeiro (21 mil) e Belo Horizonte (14 mil). Ainda segundo esses dados, 84% são homens adultos, 70% são negros e 52% não completaram sequer o ensino fundamental. A maioria dessas pessoas sobrevive com até R$ 109 mensais, valor que representa pouco mais de 7% do salário-mínimo nacional.

Por outro lado, estimativas baseadas em relatos indicam que alguns pedintes conseguem arrecadar, em média, entre R$ 35 e R$ 40 por dia, o que pode equivaler a R$ 1.000 por mês — valor superior à remuneração de muitos trabalhadores informais. Isso levanta um questionamento importante: em determinados casos, a mendicância se tornou um modelo de sobrevivência mais “rentável” do que o trabalho precarizado?

A questão se agrava ainda mais quando observamos a baixa efetividade das políticas públicas de reintegração. Não há dados precisos sobre quantas pessoas conseguem, de fato, sair da situação de rua de forma definitiva. Sabe-se, porém, que muitas retornam ao ciclo da rua mesmo após receberem apoio, refletindo a ausência de estrutura e acompanhamento contínuo. Entre elas, estão indivíduos que se entregaram a vícios e recusam oportunidades de mudança, preferindo permanecer nas ruas — uma escolha que compromete o olhar social sobre todos os demais em situação semelhante.

Esse cenário impõe um desafio à sociedade: é preciso desenvolver uma sensibilidade que vá além da aparência. Nem toda miséria é autêntica, e nem toda ajuda promove transformação. A caridade, quando feita de forma desinformada ou impulsiva, pode alimentar ciclos destrutivos. Por outro lado, a ausência de empatia e a generalização dos julgamentos também contribuem para a marginalização de quem realmente precisa.

Portanto, o ato de ajudar deve vir acompanhado de reflexão e responsabilidade. Ajudar sem compreender é, muitas vezes, alimentar o problema. É preciso discernir entre quem está na rua por necessidade e quem ali permanece por conveniência ou escolha. E mais do que isso: é preciso pressionar por políticas públicas eficazes, que ofereçam oportunidades reais de reintegração social, trabalho digno e tratamento para dependências químicas. A verdadeira caridade não está apenas em estender a mão, mas em colaborar para que ela não precise ser estendida novamente.