Uma das discussões mais fervorosas atualmente – quer no campo teórico, quer no campo prático, onde a vida cotidiana se desenvolve – diz respeito a pensar e refletir sobre a questão da identidade. Ou melhor dizendo, das identidades, no plural.
Ao pensar hoje a questão da identidade é preciso ter em mente que o mundo contemporâneo passou e vem passando por diferenças substanciais nas formas de composição e de auto definição. Em tempos em que “tudo que é sólido desmancha no ar”, é preciso ter em mente que a sociedade atual se configura a partir de paradigmas distintos de outras épocas, até mesmo dentro da modernidade.
Isso significa que parâmetros e balizas que antes respondiam aos anseios da sociedade e ao mesmo tempo conseguiam defini-la, já não conseguem mais ser capazes de tamanha amplitude. Nesse contexto, novas problemáticas surgem e junto com elas conflitos, soluções e novos paradigmas. Entre as novas questões do mundo contemporâneo, encontra-se o tema da identidade.
Em um mundo fragmentado e fluído, como é o mundo líquido moderno, é extremamente compreensível que os sujeitos procurem algo para apoiar a sua existência. Algo que os permita se conhecer e se reconhecer no mundo, tanto no que se refere às igualdades que os acomodam a um determinado lugar/espaço/grupo, quanto nas diferenças em relação aos demais lugares/espaços/grupos que não fazem parte.
Em outras palavras, todo e qualquer sujeito necessita de uma identidade, de algo que o permita ao se olhar e olhar o outro ter um sentimento de pertencimento/reconhecimento. Isso é algo que faz parte da condição humana e das relações do homem com a sociedade, em qualquer época e lugar.
Entretanto, a conjuntura pós-moderna a que habitamos – de perda de referências, de insegurança, de liquidez nas relações e estruturas sociais, etc. – é um fator que potencializa o processo da necessidade de se adquirir/construir uma identidade, haja vista que navegar em aguas incertas continuadamente nem sempre é algo prazeroso, como pondera Bauman em suas reflexões.
Nesse sentido, ao ver discussões identitárias na pauta do dia, é preciso correlacionar as discussões empreendidas com o momento histórico que vivemos e as necessidades que ele impõe. Ademais, pensando especificamente no polo político que essas discussões ocupam, é necessário também ter uma visão do processo no qual elas vêm se desenrolando, a fim de que não se caia em construções superficiais que não dão conta de responder, ainda que parcialmente, a problemática.
Dentro do próprio campo progressista, por exemplo, há setores com dificuldade de entender as necessidades históricas de se debater questões identitárias, haja vista a exclusão por muito tempo, mesmo por setores progressistas e de esquerda, de discussões que colocassem em primeiro plano os direitos dos negros, dos LGBT’s, das mulheres, etc. Entre eles, inclusive, o direito a ter a sua própria identidade e, consequentemente, ter o direito de se expressar, de ocupar espaços na sociedade e ter representação nas esferas públicas e nas artes.
É evidente que as pautas identitárias na sociedade atual não eliminam outras problemáticas e discussões, seja à esquerda, seja à direita. No entanto, para uma compreensão com maior profundidade daquilo que nos cerca, é imprescindível historicizar o processo de proeminência dos movimentos identitários, a fim de que eles sejam compreendidos dentro de um processo histórico e não como meras obras do capricho ou do “demônio”.
Qualquer que seja o espectro político ocupado pelo sujeito, uma coisa precisa ser considerada – e as eleições de 2018 no Brasil são um exemplo bastante elucidativo –, os movimentos identitários fazem parte do panorama político, filosófico e social do mundo pós-moderno ou pós-industrial que ocupamos, e é necessário através de bases racionais entendê-los.
Considerá-los como algo secundário – como setores da esquerda fazem – ou como obra de “satanás”, como grupos conservadores insistem em “compreendê-los”, não ajuda de forma alguma a esclarecer a conjuntura histórica que atravessemos, tampouco solidifica os assentos da democracia. Por outro lado, entretanto, é também preciso considerar – como o texto deixa claro – que as questões identitárias não esgotam as pautas de discussão sobre o mundo e, portanto, o diálogo e a racionalidade devem prevalecer no entendimento das problemáticas e nas resoluções dos seus respectivos conflitos.
Seja como for, a identidade é algo sobre o qual nos debruçamos e procuramos ao longo da vida definir, embora ela seja alvo de reconstruções contínuas e não deva ser analisada sob perspectivas totalizantes e definitivas, quer no plano individual, quer no plano coletivo. Como nos lembra Hannah Arendt: “Quem habita o mundo não é homem, mas os homens. A pluralidade é a lei da terra”. Que possamos, então, aprender com a filósofa e ao formular nossas visões sobre o mundo, entender que ele vai além do que os nossos pontos de vista são capazes de alcançar.