“No Estado despótico, o soberano vê sem ser visto. O ideal de toda forma de poder oculto é que o soberano, neste caso o governo democrático, que age à luz do sol, possa ser visto sem poder ver”

(BOBBIO, 2015, p.41)

Nessa reedição do clássico do jurista italiano Norberto Bobbio, que chegou as livrarias brasileiras em 2015, há um tema pertinente, atual e que faz refletir leitores e espectadores de um país onde as instituições políticas apresentam cada vez mais a tendência a se fecharem a participação popular ou mesmo de se tornarem refratárias ao cumprimento mínimo das regras igualitárias previstas pelo ordenamento formal. Esse fechamento e essa oposição se incluem em um modelo de governo que em forma é democrático mas em conteúdo tem as principais decisões que dele emanam desprovidas da essencial soberania popular, na medida em que mesmo os representantes eleitos são coadjuvantes nas principais formulações. Obviamente há problemas em estender uma análise que nasce a partir do caso italiano que Bobbio discute, mas é importante pontuar que a Itália dos anos 90 é um prenúncio ou já uma consequência de uma forma de gerir os negócios públicos pouco transparente – no sentido integral que a palavra pode ter – e inserida em um Estado cujas informações não são todas desveladas e onde portanto é latente a existência de “aparelhos invisíveis”. O livro, digno de uma leitura célere, parte da velha discussão das promessas não cumpridas da democracia que já estavam pontuadas em O Futuro da Democracia Uma Defesa das Regras do Jogo.

Uma delas, listada na obra precedente de 1986, é a eliminação do poder oculto. Na visão do intelectual turinês a maioria dos Estados democráticos possui agentes e agências que a revelia do ideal da publicidade atuam nos subterrâneos na direção do cumprimento de objetivos pouco republicanos. Um deles é o desvio de recursos públicos, de que tanto se falava na época, haja visto que o livro foi lançado no auge da Operação Mãos Limpas, que inspirou parcelas da polícia brasileira na execução da controversa Operação Lava Jato. A corrupção endêmica praticada por atores públicos e privados, no entanto, é só um dos problemas do novo despotismo em prática por trás dos órgãos oficiais. Talvez o menor e de o mais fácil moralização haja visto que põe em evidência políticos profissionais. Interpreto que os entremeios corruptos são manifestação de uma lógica muito mais preocupante que torna os espaços formais pouco afeitos a intervenção pública e livres para a ação que nega a todo momento as leis mais básicas. Nessa estrutura, temos por exemplo as centrais de investigação e inteligência, como os serviços secretos, que praticam a espionagem, a chantagem e a aplicação de jurisprudências sui generis, diria até pitorescas. Nada do que é lá feito passou pelo crivo da escolha das maiorias e muitas vezes é mantido em segredo, sob o argumento de que a eficiência do Estado depende de que um número grande de suas informações seja mantido longe de escrutínio. Bobbio argumenta que o problema da justificativa da raison d`etat é que a quantidade de dados que as democracias tem tornado secretos é incompatível com a sobrevivência de governos democráticos.

O autor admite que a publicidade tem limites, mas muitas informações de impacto na vida de cidadãos comuns acabam sendo subtraídas à moda hitlerista ou stalinista e incorporadas em uma aliança de setores que tem por objetivo central a condução não deliberativa das políticas interna e externa. Principalmente dessa última, pois o modo como os Estados dirigem as relações internacionais, mesmo nas ditas democracias, eleva em máxima potência a noção conservadora de que as burocracias se auto governam de maneira autônoma a sociedade. Isso acontece, para Bobbio, pois o concerto das nações admite um sistema de equilíbrio em que a exceção dos países vale mais que a regra internacional. No caso da formulação da política internacional, nem são os burocratas formalmente constituídos (diplomatas no geral) que tomam decisões comerciais e políticas de importante densidade acerca dos negócios entre países, mas como já dito, uma conjunção de atores interessados, por vezes grandes empresas, que contaminam a opinião pública tentando convencê-la de que determinadas medidas comerciais compõem a ideia de “interesse nacional”. Bobbio retoma o entendimento de alguns autores como Carl Schmitt e Thomas Hobbes sobre as relações entre Estado e sociedade para argumentar sobre a legitimidade do poder político. O soberano tudo pode porque sua autoridade emana de contratos sociais ou da legalidade de códigos costumeiros ou jurídicos. Tradicionalmente, foram diversas as formas do Estado moderno se legitimar. Antes tínhamos o rei alegando que o seu poder emanava de Deus (Droit divin des rois), depois os representantes alegavam a força da representação que exerciam, ou seja, a de que seu poder emanava principalmente da sociedade, do povo, da nação.

Hoje, na visão do jurista, o poder não depende dos moral constituencies para adquirir legitimidade, mas dos arcana dei, que na tradução do latim são sujeitos e componentes extremamente secretos e misteriosos que estão em constante interação com os tomadores de decisão. Todos esses compõem um outro lado do Estado, desconhecido do grande público que muitas vezes acredita que influencia em questões importantes por meio da fachada dos processos eleitorais, quando na verdade pode ter seus governantes retirados ao bel prazer de interesses “estranhos”. Do segredo e do mistério, cria-se uma governança de dentro que obriga figuras importantes a apresentarem um face pública e outra privada (curiosamente o lema de Hillary Clinton nas eleições norte-americanas de 2016, proferida em uma palestra para banqueiros). Teríamos aqui não apenas a negação da democracia, mas a renúncia aos princípios do liberalismo político que em tese deveriam ser tão caros na construção institucional de “regimes de liberdade”. É importante ressaltar que quando falamos de atores misteriosos ou ocultos não se trata de homens e mulheres que se escondem. Eles são visíveis e caminham nos salões dos Parlamentos, uma vez que precisam colonizar os locais de materialização da soberania. É a ação pública que se afigura “privada”, restrita. Que se vale do Estado para executar interesses estranhos. Norberto Bobbio cita o caso de uma ampla ligação envolvendo políticos, empresários e espiões estrangeiros que por meio de uma cooperação com os EUA executaram via serviço secreto italiano uma política de perseguição a figuras de extrema esquerda no país, tentando desestabilizar a oposição na Itália e impedir que o Partido Comunista Italiano ganhasse adesão das massas e chegasse ao poder. A face oculta e silenciada não intenta satisfazer apenas o ímpeto de indivíduos mas de instituições imperiais cuja meta central é manter as democracias sob tutela. O contexto era de Guerra Fria nas décadas de 1970 e 1980 quando tudo isso ocorreu e veio a público em forma de escândalo, o que nem de perto significa que os regimes políticos deixaram de lado a ideia de criar inimigos interiores e exteriores que dão margem para que sejam aceitáveis o arbítrio, o segredo e o cinismo como maneiras de conduzir uma governabilidade oculta.

O escândalo, mais que um termo, é um conceito que expressa o momento em que o segredo é revelado, a apoteose da corrosão democrática onde os cidadãos normativamente considerados como tal ficam frente a frente com uma democraticidade verdadeiramente esvaziada de seu conteúdo. Se defrontam com o “soberano” que em nada deve a Luis XIV ou a Henrique V, com a confusão entre a “pessoa” e o “Estado” ou entre as pessoas e o Estado. O livro de Norberto Bobbio é curto e dividido em alguns ensaios publicados no início dos anos de 1980 (quatro no total), quando o autor fora a imprensa, como uma inteligência progressista e engajada que era, para tematizar o problema das ações não democráticas que ocorrem “por baixo dos panos” do Estado. Bobbio não faz isso de maneira banal ou vulgar, com denuncismo vago. Como grande pensador que era, sabia retomar argumentos teóricos muito bem fundados da tradição liberal a qual era vinculado para pensar no esvaziamento das democracias e seu distanciamento do ideal normativo clássico. O que há são modelos democráticos onde o povo decididamente não governa mas que são chamados “governos do povo”. Sujeitos todos estamos ao segredo, a mentira, as justificativas oficiais e públicas que constituem quase como um Estado de exceção permanente e impermeável a reclamos. No Brasil, assim como na Itália, prevalecem os segredos, a despeito do crescimento de uma noção vaga de transparência e de controle que nos dá informações públicas de como o erário é direcionado, o que é importante mas nem de longe diz respeito à preocupações que deveriam protagonizar o debate. O fato de não conhecermos por exemplo os credores da nossa dívida pública – e do governo nacional se negar a fornecer essa informação – em muito diz sobre como o “oculto” se enraizou na forma de administrar a nossa sociedade. El tirano es italiano mas também es brasileño. Es mundial, sobretudo. Ao final do livro temos um ensaio mais curto, que possui de fato o título da publicação original intitulada “Democracia e Segredo”, lançada na Itália em 2011; ou seja é uma obra recente (uma antologia), post mortem de Bobbio que faleceu em 2004, e que procurou reunir escritos antigos do autor e que certamente em muito contribui, com uma linguagem simples também produto das sempre boas traduções da Unesp, para o debate atualmente travado na Ciência Política sobre o fechamento dos Estados liberais. Ensaios cujos argumentos se conectam, ensaios leves e ao mesmo tempo densos.

Referências Bibliográficas
BOBBIO, Norberto. Democracia e Segredo. Editora Unesp: 2015.