Vivemos em um mundo repleto de ironias, de contradições, de paradoxos, em um mundo confuso e confusamente percebido, como escreveu Milton Santos. Vemos de um lado a tecnologia se desenvolver em uma velocidade cada vez maior, enquanto nós parecemos ir no sentido contrário, em um processo contínuo e acelerado de desumanização. É óbvio que o desenvolvimento tecnológico em si não é o causador do problema, mas o progresso humano está paulatinamente mais distante do progresso da máquina e das grandes cidades. É como se para que um exista, o outro tenha que ceder espaço de si mesmo, adaptar-se, abnegar-se, transforma-se no que não é.
Por mais que o desenvolvimento da ciência e da tecnologia seja importante e traga benefícios para a vida individual e coletiva, é preciso considerar que um mundo de coisas não é um mundo de pessoas. Todo “progresso” conseguido através da tecnologia deve servir como instrumento para que haja uma melhora na condição humana, individual e/ou coletivamente. Desse modo, caso não seja percebido um progresso similar entre o mundo das máquinas e o mundo dos homens, é necessário repensar e reorganizar as bases em que tal “desenvolvimento” tem ocorrido.
Se analisarmos os altos índices (com projeções ainda maiores) de doenças psicológicas e de suicídio, perceberemos que as áreas com maior incidência são as grandes cidades, onde a modernidade, com todo o seu “progresso” material, consegue se “desenvolver” com maior êxito. Além disso, os jovens são o grupo mais afetado, o que não significa que outras pessoas não possam sofrer com os mesmos problemas.
Esses dados separados podem não ter muito nexo. Contudo se analisados juntos, fazem todo o sentido, já que há uma pressão muito maior sobre as atuais gerações para que elas consigam se afirmar e obter sucesso dentro dos parâmetros estabelecidos pela sociedade, pautada, evidentemente, pelo consumismo e espetacularização de bens que afirmam a magnificência do mundo líquido moderno.
Com isso, na medida em que o “sucesso” não é atingido, uma vez que nem todos possuem os “pré-requisitos” necessários para adentrar no oásis de prazer da sociedade de consumo, nem os “talentos” necessários para agradar as plateias do espetáculo permanente que é a nossa sociedade, passa-se a ter sujeitos frustrados, insatisfeitos e desindividualizados, que ao mesmo tempo que não conseguem se encaixar no mundo, não conseguem reconhecer a si próprios.
Em outras palavras, não há espaço para todos brilharem e/ou nem todos querem, de fato, “brilhar”. Logo, muitos acabam ficando no meio do caminho, entre ser um sujeito individual, mas desencaixado; ou ser um sujeito despersonalizado, porém ajustado. O preço cobrado por sair de um lugar, mas não chegar a outro, é ficar perdido: da sociedade e, sobretudo, de si mesmo. Ponto em que dificilmente há retorno, como se uma prisão se apossasse da vida do sujeito e o impedisse de prosseguir, ou pior, de enxergar o caminho de retorno ao seu eu. Longe do mundo e perdido de si, viver ou morrer passam a ser sinônimos perfeitos.
Apesar desses casos serem, aparentemente, mais graves, não se deve entender que renunciar à própria individualidade em favor do cumprimento de protocolos sociais seja algo saudável ou normal. Pelo contrário, é no enquadramento, na subserviência às regras de uma sociedade que se apresenta em um temível estado patológico que reside o âmago do problema, pois é por meio da conversão de novas ovelhas que a “igreja” expande o seu rebanho e, consequentemente, o seu poder.
No entanto, há de se entender também, que é extremamente difícil escapar de um modus operandi que atinge profundamente a nossa psique e faz com que nós mesmos sejamos os nossos vigilantes e punidores. Mesmo entre pessoas que são esclarecidas e que procuram reafirmar a sua condição de sujeitos humanos, há a ação impositiva das normas de conduta social, de tal maneira que estando em sociedade, é impossível não ser atingido por alguns dos incontáveis sustentáculos do nosso admirável mundo novo.
Para os que conseguem enxergar as cordas, há sempre um atalho que permite o retorno ao seu eu e o exercício da sua subjetividade. Para os que não enxergam ou enxergam parcial e vagarosamente, a conta chega: mais hora, menos hora, de forma transitória ou definitiva. O número crescente e alarmante de pessoas com depressão, ansiedade, síndrome do pânico e, por consequência, de consumo de antidepressivos, ansiolíticos, álcool, drogas e de suicídios, como o ponto final de desesperança, perda de si e de desencaixe no mundo, não aponta outro caminho.
É urgente repensar o nosso mundo e declarar a ironia de uma sociedade que transveste o fracasso em uma roupa de sucesso e que ao criar a ilusão de uma sociedade de indivíduos, criou uma sociedade de massa, uniforme e prisioneira em um reino de ignorância, indiferença, egoísmo e apatia, em que todos, em alguma medida, vivem de forma mecânica, anônima, invisível e solitária, distantes de si, distantes do mundo, chorando as lágrimas escassas de quem não acredita mais no choro.
O nosso admirável mundo líquido com todo o seu “progresso” tem nos deixado tristes, sozinhos, frios, inseguros, perdidos, ansiosos. Desesperados para preencher o vazio que nos aflige, que nos atormenta, que não nos deixa dormir, que invade os nossos sonhos e os transforma em pesadelos, que nos torna insignificantes e as nossas vidas sem nenhum sentido, a não ser correr e ter.
Estamos todos doentes e precisamos nos curar. Entretanto, a cura não está na sanidade de um mundo aparentemente são, mas completamente adoecido; e sim, na lou(cura) de ser a si mesmo e permitir que os outros também sejam, pois qualquer caminho que tomemos deve ter como destino o nosso ser, já que é somente permitindo que o que há de gente em nós queime, que o que há de gente no mundo poderá arder em chamas e iluminar os céus com a sua beleza.