Oito bilionários detêm o mesmo patrimônio do que 3,6 bilhões de pessoas. Um dado que aparentemente choca as pessoas. Mas que, com pouquíssimo tempo, será esquecido e substituído por qualquer notícia, como a nova dieta de algum “famoso”.
O fato é que, como diria Milton Santos, nunca houve na história da humanidade tantos recursos capazes de diminuir as desigualdades e é justamente nesta época que a desigualdade parece aumentar sem precedentes. Segundo o geógrafo, dois fatores seriam indispensáveis para se entender isso: a tirania do dinheiro e a tirania da informação.
De um lado, a tirania do dinheiro reduziu todas as coisas a uma análise econômico-mercadológica. Ou seja, o dinheiro ocupa todos os espaços e tudo que habita esses espaços, inclusive, as pessoas, de tal maneira que o próprio pensar público está intimamente relacionado a um prisma econômico (consumista). Toda a vida gira em torno do consumo, tudo está na prateleira e pode ser consumido, não há uma grande diferença entre um produto e um indivíduo, pois ambos passaram a possuir o mesmo valor sígnico.
De outro lado, a tirania da informação foi (e é) o que permitiu que a tirania do dinheiro se estabelecesse, pois, de maneira geral, o pensamento precede a ação, de modo que para que qualquer ideia seja introduzida como verdade, faz-se necessário o domínio do controle da informação, de ideias preexistentes, que repetidas à exaustão, tornam-se verdades absolutas. Não à toa, Huxley diz em seu “Admirável Mundo Novo” que – “Sessenta e duas mil repetições formam uma verdade”.
Assim sendo, a desigualdade advém da aceitação de uma cartilha com regras de comportamento, as quais possuem como função elementar a manutenção de um sistema excludente e desigual, que permite que haja dados como o citado no início do texto. Entretanto, mais do que uma visão dualista ortodoxa, é preciso demonstrar em que parte nós, ocupantes da parte inferior do iceberg, contribuímos para isso. Para tanto, uma análise da função do espetáculo na sociedade, a partir das lentes de Zygmunt Bauman, parece-me indispensável.
Para Bauman, o grande trunfo da cultura consumista está na sua capacidade permanente de transformar débitos em créditos, isto é, qualquer problema possui uma potencial resolução guardada em algum shopping center. Dessa forma, a própria desigualdade e todos os inúmeros problemas que dela decorrem podem ser resolvidos dentro da própria estrutura que garante a sua perpetuação. É o que o sociólogo polonês diz em “Babel – Entre a Incerteza e a Esperança”, escrito em forma de diálogo com o jornalista italiano Ezio Mauro.
“Fazer compras tem sido representado como solução universal para os problemas e preocupações humanas mais universais. Outrora todos caminhos levavam a Roma. Hoje todos levam às lojas.”
Mais do que a incompreensão do sujeito da realidade que o cerca, esse entendimento de mundo, faz com que ele se abstenha de todos os problemas construídos socialmente, consumindo o jogo de aparências de uma realidade transfigurada (espetacularizada) como se não possuísse responsabilidade por consentir para os continuísmos desse modus operandi.
“Uma reflexão coletiva e pública nunca parece digna de fato do esforço ou do empreendimento. ”
O que se sucede, nesse sentido, é a imersão do sujeito e de todas as instituições nesse universo do espetáculo, em que há a perda da capacidade transformadora do mundo na medida em que o indivíduo se torna parte indissolúvel de uma plateia que consome a realidade fictícia que lhe é apresentada, sem poder de questionamento e mudança, já que o controle remoto não está nas suas mãos. O que seria digno de nota, se, para piorar e consolidar essa ordem, nós não nos sentíssemos confortados por não ter a capacidade de escolher o programa.
Dito de outro modo, embora não tenhamos a capacidade de controlar os mecanismos da tirania do dinheiro e da informação, nós aceitamos o papel de plateia subserviente e ordeira de um espetáculo que por meio do fetiche e da “magia” do consumo passa nas telas um mundo repleto de possibilidades maravilhosas para quem quiser buscá-lo. A capacidade reflexiva é retirada e em seu lugar é colocada apenas a obediência, a alienação e o conformismo, já que se sabe que o espetáculo só é oferecido em sua totalidade, sem interferências externas, o que implica a aceitação constante da condição de espectador voraz de todas as instruções que lhes são passadas.
“Eu compro e recebo ideias pré-processadas e transmitidas de formas funcionais para a narrativa de outrem. Nenhum tipo de esforço é solicitado em troca de desistir de toda e qualquer forma de autonomia. O programa já vem com a sua moral, seus sentimentos e seus juízos inerentes. É um pacote completo, pronto a ser consumido do princípio ao fim. Os resultados são garantidos, e eu não posso mudá-los.”
As consequências de toda essa estrutura é a tamanha desigualdade que nós observamos, que acarreta o fortalecimento cada vez maior de empresas em detrimento da desnutrição de Estados, que possuem como função primordial garantir o aumento de gordura de bilionários que parecem nunca estar satisfeitos com a desgraça que ajudam a provocar. No entanto, como é dito, nós, a parte traseira do tem, desde o proletariado mais baixo até a “classe média” – que por mais que se sinta próxima ao poder, sabe que também não passa de massa de manobra – também somos responsáveis pela manutenção de um sistema selvagem e excludente que se sustenta por meio da desigualdade.
Somos responsáveis porque aceitamos ser plateia, porque compramos o delírio de que o Éden está corporificado em algum shopping center, porque nós abstemos de ser a diferença, de questionar, por não assumirmos o nosso quinhão de responsabilidade, por não desejarmos carregar o fardo da mudança, por permitirmos que o espaço público – do povo – se transformasse em uma loja de conveniências de interesses privados, por comprarmos ingressos para um filme repetitivo e de extremo mau-gosto.
Talvez, eu tenha pegado pesado demais comigo e com vocês, mas não sei se teria como ser diferente, porque são oito bilionários possuindo o mesmo patrimônio da metade da população mundial. Repito, oito bilionários possuindo o mesmo patrimônio da metade da população mundial. Mas, caso alguém acredite ser algum tipo de piada, eu esclareço: é apenas a paródia de uma fábula colorida. Levantem-se, saiam e lutem por mudanças, ou comprem ingressos, pipoca, refrigerante e sentem-se confortavelmente para assistir mais uma sessão, pois, afinal, como diz Bauman: “O lugar de pessoas desobrigadas de responsabilidade é a plateia”.