Destruição da natureza, egoísmo, indiferença, comodismo, solidão, medo, insegurança, violência, controle, vigilância, punição, caos. Essa são características presentes na sociedade distópica criada por Ignácio de Loyola Brandão no livro “Não Verás País Nenhum”. Publicado em 1981, o livro causou certo estranhamento, haja vista o seu caráter um tanto quanto “exagerado”. Entretanto, se olharmos ao nosso redor, perceberemos que, infelizmente, somos acometidos diariamente pelos exageros descritos no livro, de tal modo que a ficção se tornou realidade.

A estória se passa em uma São Paulo futurista – mas com aspectos de admirável mundo velho, como é dito em certo momento do livro – marcada pela superpopulação, pela disputa por espaço e pela extrema fragmentação, com a divisão da cidade em “guetos”, que não se comunicam ou se intercruzam. A imagem de uma São Paulo futura construída por Loyola na década de 1980 se aproxima muito da realidade da maior parte das cidades brasileiras e do mundo.

Quanto maiores, mais populosas e “globalizadas”, as cidades apresentam estratificações e divisões que as tornam completamente fragmentadas. Entre outros autores, Zygmunt Bauman e Roberto Lobato Corrêa discorrem sobre esse fenômeno presente no espaço urbano, que se apresenta como um demarcador do lugar social dos indivíduos, tal qual aparece no livro com as inúmeras divisões da cidade, cada qual correspondendo ao lugar social que os sujeitos pertencem. Diante de um espaço totalmente fragmentado, a cidade e as pessoas, por consequência, passam a não exercer um elemento fundamental para o bom convívio social: a comunicação. Assim, a ideia de comunidade é rompida e, com ela, o cimento que mantém o tecido social coeso; ao mesmo tempo em que muros se erguem para aumentar ainda mais a distância entre as gentes e os espaços.

Evidentemente, a fuga dos inúmeros medos que nos cercam conta como fator atenuante dos processos segregacionistas presentes na sociedade moderna. Entretanto, até que ponto muitos desses medos não são criados propositadamente para nos manter afastados? Para nos impedir de viver, de conhecer, de observar, de construir pontes? Mais do que comodidade, será que com os muros não se busca construir um mundo só para si, um refúgio só com iguais? Além disso, e quanto aos processos de segregação imposta ou involuntária, para lembrar Corrêa e Bauman novamente. Eles existem por vontade própria? As favelas, as áreas marginalizadas e esquecidas pelo Estado, ou como é colocado no livro, “Os Acampamentos Paupérrimos” existem pela sua própria natureza?

Por falar em natureza, como não destacar a destruição ambiental presente em “Não Verás País Nenhum”: a Floresta Amazônica transformada em um grande deserto, os desastres ambientais, a mortificação da fauna sem condições para continuar a viver, o calor insuportável? Mais que isso: como não traçar um paralelo com a realidade atual do planeta, com a forma cada vez mais predatória e inconsciente que nos relacionamos com a natureza, da qual somos parte? Para azar (nosso), a natureza não é um banco, porque se fosse, como diria Galeano, já teria sido salva.

No entanto, há de se considerar também que quando uma tragédia é transvestida em espetáculo, torna-se mais difícil perceber que o espetáculo não passa de uma farsa. Mas, era assim que os donos do poder, representados pelo “Esquema”, agiam no livro, de modo a conseguir, por meio do controle constante e da alienação, transformar a destruição da Amazônia na oitava maravilha do mundo e das misérias cotidianas em coisas a serem aplaudidas.

Da dificuldade de percepção à cegueira leva-se apenas alguns segundos. E da cegueira à resignação, ao comodismo, ao sentimento de que não é possível fazer nada, de que o que realmente importa é a sobrevivência individual, apenas um piscar de olhos. Entre um olho que se fecha e o outro que se abre, ninguém entende mais nada, tampouco quer entender. Apenas quer continuar a viver e buscar, à sua maneira (o que significa dizer sozinho), existir com o máximo de “conforto” possível. Ou de acomodação.

“MORAR ENTRE QUATRO PAREDES, IR PARA O EMPREGO EM FURGÕES BLINDADOS, ENCERRAR-SE NA FÁBRICA POR DOZE HORAS, TEMER A CHACINA DIÁRIA. CONVIVER A CADA INSTANTE COM A POSSIBILIDADE DE MORRER, PREPARAR-SE. FOMOS NOS HABITUANDO, DE TAL MODO QUE PASSAMOS A PACTUAR COM A TRAGÉDIA, ACEITANDO-A COMO COTIDIANO. ME ESPANTA ESSA CAPACIDADE DE ACOMODAÇÃO DA MENTALIDADE, SUA ADAPTAÇÃO AO HORROR. ACREDITO QUE A GENTE POSSUA UM COMPONENTE DE PERVERSIDADE QUE NOS LEVA A ENCARAR COMO NORMAL ESSE PAVOR, A DESEJÁ-LO, ÀS VEZES, DESDE QUE NÃO NOS TOQUE. UMA PORCENTAGEM DE PERVERSIDADE QUE TEM SIDO ALIMENTADA PELO ESQUEMA, ESSA COISA TÃO ABSTRATA, QUE CONSEGUE SE MANTER EM MEIO À ANARQUIA, AO CAOS ESTABELECIDO COMO ORDEM, À ANOMALIA MASCARADA EM PROGRESSO.”

Embora não seja fácil perceber as cordas convivendo todos os dias em um teatro de marionetes, sucumbir ao que se coloca como a norma-padrão não é o caminho que nos humaniza, ao contrário, é o que torna o mal comum, que o banaliza, que retira o que há de gente em nós, que nos torna cúmplices das nossas próprias mortes. Mas também, como fugir, tendo todos os nossos passos vigiados e punidas todas nossas subversões? Será possível enxergar mesmo quando tudo se tornou escuro e a cegueira parece ter atingido a todos?

“VIVENDO INTOXICADOS, ABORDADOS POR TODOS OS LADOS. PELO AR E COM OS MÉTODOS DE INSINUAÇÃO, NÃO MAIS SUTIS, COM QUE NOS BOMBARDEIAM. DOPADOS. QUANTAS VEZES ME VI AUTOMATICAMENTE A DEFENDER O ESQUEMA. E ENTÃO ME SURPREENDIA COM O DESDOBRAMENTO INEXPLICÁVEL QUE SE PRODUZIA EM MIM.”

Quando passamos a ver o arbitrário e não reclamar, damos espaço para que ele se torne justo. Não pela justiça, mas pela força da linguagem, da palavra, das mentiras que repetidas exaustivamente, sem oposição, se tornam verdades. E, desse modo, os donos do poder, o “Esquema”, podem agir tranquilamente, já que passamos a aceitar as sombras como a realidade, ou pior, a perder o conceito de real. É a lei do salva-se quem puder que passa a prevalecer nesse nevoeiro, em que perdido de si, ninguém consegue encontrar-se no mundo. É a lei do desvínculo, do morra ou mate o seu vizinho, do sobreviva ou seja apanhado.

“NINGUÉM QUER SABER DE MAIS NADA. O QUE VALE É O DIA A DIA. SÓ SE PENSA NA SOBREVIVÊNCIA.”

Apesar de todos os problemas, do mundo não ser um lugar acolhedor, da nossa sociedade estar adoecida, do Brasil construída por Loyola não ter nada de admirável, não há o que fazer? A realidade não pode ser modificada? Será o comodismo, a covardia, a indiferença, o egoísmo, as características necessárias para reafirmar o nosso valor enquanto humanos? Ou será que gerar outros mundos é algo inatingível, é uma utopia que deve ser deixada de lado, porque nascemos no mundo, tal qual ele se apresenta e, portanto, não somos responsáveis por ele?

“…DE TUDO QUE VOCÊ DISSE, ELISA, EXISTE UM PONTO EM QUE ESTÁ ERRADA, A GENTE CARREGA CULPA, PORQUE TEM, VOCÊ RECEBEU O MUNDO ASSIM, E ADAPTOU-SE, DEIXOU A RESPONSABILIDADE PARA OS OUTROS, É MAIS FÁCIL, NÃO TENTOU MUDAR NADA…”

Ninguém é capaz sozinho de mudar o mundo, tampouco deve ter essa audácia, porque a vida é movimento e a todo momento, de algum modo, as coisas estão se modificando. No entanto, cabe a cada um de nós perceber que o que nos cerca tem feito o coração sangrar, o sangue a se espalhar e a nossa humanidade a se esconder, se apequenar e aceitar como habitual aquilo que é parte de um produto histórico. Talvez, seja hora de perceber que, independente das nossas vontades, somos responsáveis por tudo que vive e compartilha a existência no planeta. Talvez, seja hora de desassossegar o peito e decidir que país, que mundo, queremos ver. Talvez, seja hora de se levantar e perceber que, ao não fazer nada, temos ensopado nossas roupas de suor, porque a chuva já não cai, assim como nossas lágrimas.